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A Vida No Norte
Passados trinta minutos, recebo uma notificação de que ganhei a habilidade Furtiva. Não posso dizer que fiquei surpreendido, esconder-me fazia parte do plano que eu e o Ali delineámos. Entre a minha Regalia Média e ter um nível extremamente baixo num ambiente com Mana elevado, o Sistema está a gerar automaticamente bónus adicionais para eu aprender mais depressa, para ajudar a equilibrar a relação risco/recompensa. Assim que a notificação aparece, um ligeiro formigueiro percorre o meu corpo. O conhecimento altera a forma como me movimento, penso e analiso o que me rodeia.
O primeiro sinal de perigo com que me deparo é o chilrear, é demasiado alto. Deteto-a logo a seguir, uma sombra negra do tamanho de um Dobermann a mover-se pelo chão, com seis pernas e antenas. As formigas não deveriam ser assim tão grandes. Congelo e, depois, começo a recuar lentamente. Ainda bem que aquilo não me viu.
— Ei! Seu monstro lindo e grande. Aqui! Olha um pedacinho delicioso para a tua rainha. Ei! — um Ali com um sorriso maníaco grita por cima de mim e abana os braços para chamar a atenção.
— Que raio? — Não há tempo para fazer mais nada, apenas pude começar a refilar com ele, porque a formiga, atraída pelas pequenas artimanhas do idiota, vira-se para mim e, passado um pequeno momento de hesitação, avança diretamente para mim. Levanto o bastão de caminhada e avanço, na esperança de o usar como lança.
Sim, não faço esgrima e isto também não é uma espada. A ponta desliza inofensivamente e a formiga já está em cima de mim, a empurrar-me contra o chão e a tentar arrancar-me a cabeça com as suas mandíbulas.
Levanto-me com esforço e começo a espernear, antes de a conseguir tirar de cima de mim. Felizmente, a minha mochila ajuda um bocadinho e o ângulo não me deixa ficar deitado, até consegui que a formiga ficasse debaixo de mim, quando a atirei. Em cima da formiga, estico-me todo e espeto-lhe o bastão no pescoço, mantendo-o fixo com um braço, enquanto procuro desesperadamente pela minha faca de sobrevivência. Demoro um pouco a encontrá-la no cinto e, depois, passo alguns minutos a espetá-la desenfreadamente, até a criatura não se mexer.
Estou sujo, malcheiroso e cheio de entranhas de formiga. Não quero saber de nada disso, apenas me levanto, completamente furioso.
— Que raio foi aquilo?
— Um treino — o Ali encolhe os ombros, descontraído. — Tinhas de passar de nível. Aquela era uma formiga de Nível 1. Nunca conseguirias encontrar uma presa tão fácil. Vais apanhar o teu saque?
— Tu, tu, tu… — gaguejo. Viro-me para a formiga e dou-lhe alguns pontapés para descarregar a frustração e o medo acumulados. Depois de passar a adrenalina, deixo-me cair ao lado do corpo, antes de finalmente me aperceber do que ele disse. — Saque?
— Pousa a tua mão na formiga e pensa ou diz “saque”.
Obedeço e pestanejo quando surge uma janela. Estico a mão e pego no saque que está à minha frente, enquanto faço uma careta. Um naco de carne de formiga.
— Põe no teu inventário, estúpido.
Já desisti de questionar as coisas impossíveis que estão a acontecer e obriguei-me a aceitar tudo isto. Quando penso no inventário, surge uma grelha de cinco por cinco. Ao pôr a minha mão na grelha, a carne aparece dentro dela, preenchendo um espaço. Pergunto-me se será acumulável.
— Boa – começo a abrir a mochila, quando sou interrompido.
— Não vale a pena. Só os itens gerados pelo Sistema podem ficar no inventário – comenta o Ali, enquanto continua a andar à minha volta.
— Que aldrabice! — resmungo. Continuo com a mochila posta e observo o resto do corpo da formiga. Suponho que este mundo não tenha uma engenhoca para dissolver corpos.
Passaste de Nível!
Chegaste ao Nível 2 de Guarda de Honra de Erethran. Os pontos foram distribuídos automaticamente. Tens 3 atributos livres por distribuir. As habilidades de classe estão bloqueadas.
É estranho a notificação só ter aparecido agora. Paro e olho para o Ali, que me levanta o polegar. Ele está a ocultá-las até ser uma boa altura para as ver. Quando acordei, fiquei bastante desiludido ao ver que a experiência que tinha acumulado não me tinha feito passar de nível, nem mesmo para um Nível 2. Mas o Ali tinha explicado que as classes Avançadas tinham requisitos de experiência mais avançados. Bastou-me olhar para os pontos de estatística gratuitos para os despejar a todos na Sorte. Sim, eu sei que podia fazer coisas mais inteligentes com os pontos, como maximizar a minha Agilidade ou talvez a minha Força, para ficar todo-poderoso.
Contudo, quem quer que pense isso, não teve a minha vida. Se a minha estatística de Sorte está assim tão baixa, isso explica muitas coisas do meu passado. Eu nem sequer estaria em Yukon, se o meu apartamento não tivesse ardido uma semana depois de perder o meu trabalho como programador, o que me levou a vir para aqui com a minha namorada da altura. Também foi uma bela porcaria, o que aconteceu entre nós. O raio da companhia de seguros não aceitou os meus pedidos, o que me deixou sem absolutamente nada, a não ser umas poupanças miseráveis. Em vez de ir para casa envergonhar o meu pai, peguei na mala e mudei-me para um novo território. Preferia morrer a ver o meu pai envergonhado. Agora que tenho a oportunidade de reencaminhar algum carma negativo ou o destino, vou aproveitar.
— Sabes que não é esse tipo de sorte, certo?
Sou superior a ele. Sou superior a ele. Sou superior a ele. Mostro-lhe o dedo do meio, continuo e voltamos a ficar sérios.
***
Durante o resto do dia, fui descendo cautelosamente, evitando criaturas gigantes e bastante ubíquas sempre que pude e, ocasionalmente, matando-as, quando não o conseguia. Matá-las não foi uma decisão minha, mas, depois de uma negociação apressada, eu e o Ali chegámos a um consenso. Ele ficou de me avisar de quaisquer monstros de nível baixo que encontrássemos e eu iria atacá-los e matá-los, se o conseguisse fazer de forma segura. Por sua vez, ele não me iria obrigar a nada, desde que eu me esforçasse a sério. Se estivesse no exército, teria de lhe chamar sargento. Como não estou, chamo-lhe apenas idiota.
As coisas só se tornaram mesmo assustadoras uma vez. Estava a andar sob o que achava serem árvores e apercebi-me de que eram as pernas do que apenas posso descrever como um ogre gigante. Felizmente, ele falhou o primeiro golpe e, depois de o fazer acreditar que estava a correr pela colina abaixo, ativei o MFQ e corri pela colina acima, passando por ele. Passei a meia hora seguinte a vê-lo correr, a derrubar árvores e a esmagar monstros que apareciam no seu caminho. Nunca tive tanto medo na vida, principalmente porque a dieta do ogre parecia consistir em qualquer coisa que tivesse carne.
Por outro lado, tinha de lhe agradecer pela minha morte de nível mais elevado, uma raposa cuja coluna foi esmagada por uma árvore que caiu. O saque só consistiu em mais órgãos e no pelo dela, mas não me queixo da experiência gratuita e do saque.
Gostaria de dizer que passei o resto do dia a descer a colina com dificuldade, a esforçar-me de forma heroica, apesar da exaustão e do medo. Mas, às três da tarde, estava acabado. Estar constantemente com a adrenalina elevada, a esconder-me e a recuar incessantemente, tinha-me esgotado e eu sabia que se continuasse assim, iria cometer um erro. Não estava a fazer um bom tempo, de todo, mal tinha percorrido metade do caminho que tinha de fazer. Quando encontrei uma pequena depressão que estava relativamente bem escondida, desisti simplesmente. Tirei o meu telemóvel e tentei ligá-lo. Permaneceu desligado e olhei para o Ali.
— Não te dês ao trabalho. Os aparelhos eletrónicos são sempre os primeiros a morrer quando o Mana no ambiente chega a este ponto. Se não estiver protegido ou não for feito para funcionar com Mana, nada sobrevive — explica o Ali.
— Bolas! Todos os aparelhos? — questiono e ele acena. Raios, isso deve significar que a maioria dos veículos recentes está morto, juntamente com a Internet, os telemóveis e a maioria das comodidades modernas. Esfrego a testa, guardo o telemóvel e encolho-me, decidido a descansar durante uns minutos. Devo ter adormecido porque, quando dei por mim, eram 19 horas.
— Porquê nós? — perguntei ao Ali, enquanto fazia o jantar com as minhas provisões do campismo.
— São flocos de neve únicos, os humanos. Completamente únicos com um potencial sem limites — o Ali, que estava a vigiar lá fora, responde sem olhar para mim.
— Chega de sarcasmo. A sério, porquê nós? Porquê agora?
— Lamento dizer que não há uma razão especial. O fluxo do Mana chegou finalmente ao ponto em que podem ser adicionados ao Sistema.
— Muito bem, vamos recuar um bocadinho. O que é o Mana? Continuo a vê-lo no meu quadro de estatísticas e tu continuas a falar dele, mas isso não explica nada.
— Tenho milhares de explicações e nenhuma delas é para ti, miúdo. São nano-robôs que entram no teu corpo e o controlam, utilizando cordas quânticas e energia ultra dimensional. Ou podes chamar-lhe uma força ambiente do universo, a força única que compõe todos os elementos. Podia ser matéria escura feita de carne ou de magia. É tudo a mesma coisa, pessoas a tagarelar sem terem a mínima ideia — o Ali encolhe os ombros. — É o que nos rodeia, o que faz o Sistema funcionar.
— Está bem. Então, o que é o Sistema?
— As caixas azuis. Os pontos de experiência. O saque. A Loja que te permite comprar qualquer coisa em qualquer lugar ou os lojistas que arrendam o espaço. É a forma como nos melhoramos a nós mesmos e ao nosso mundo. É o que me obriga a trabalhar contigo e para ti. É tudo. O Sistema é o teu mundo e o teu universo agora — exclama o Ali, com fatalismo.
— Pensava que o Conselho Galáctico o tinha criado. Quer dizer, no anúncio... — fiz sinal para onde as caixas azuis estavam.
— O CG fazer alguma coisa? A única coisa que aqueles burocratas conseguiriam fazer é um monte de porcaria. E só porque alguém lhes teria dito como o fazer. Aqueles idiotas têm o mínimo controlo possível do Sistema e a galáxia é mais feliz assim. Esquece isso, miúdo. O Sistema apenas existe.
— Vá lá, não estás nem um bocadinho curioso por saber o que é o Sistema? Controla as nossas vidas e...
— Chega. Para com isso — o Ali vira-se, flutua até à minha cara e olha para mim.
— Só quero saber, bolas!
Parabéns! Demanda atribuída: O Sistema
Descobre o que é o Sistema.
Recompensas: Saber é poder. Ou algo parecido.
Assim que a demanda aparece, o Ali faz um som desaprovador e afasta-se a flutuar. Li tudo e fiz a mensagem desaparecer, antes de falar novamente:
— Qual é o teu problema?
— Nada. Nada de nada — o Ali está sentado no ar, a flutuar com as pernas cruzadas e recusa-se a olhar para mim.
— Ali.
— Odeio essa demanda. É a maior porcaria da galáxia. Todos a recebem e todos julgam que vão ser os primeiros a resolvê-la, mas acabam por passar os 80 anos seguintes sentados numa maldita biblioteca, a debater com outros malditos investigadores sobre um artigo Kricklik publicado há dois mil anos! E, depois, bem, bolas... — à medida que fala, a voz dele fica cada vez mais alta.
— Já percebi, já percebi. Tens assuntos por resolver. Podemos não deitar a floresta abaixo por causa disso? — faço-lhe sinal com as mãos para baixar o volume, para o tentar calar.
Depois de se acalmar ligeiramente, o Ali resmunga:
— Não tenho assuntos por resolver. Tu é que tens!
Pronto, passando à frente. Demandas. Se o sistema continua a funcionar da mesma maneira, então, o separador da demanda está em...
Demandas Exclusiva Sair do parque nacional de Kluane vivo Grupo Nenhum Sistema Desvendar os segredos do Sistema— Quando recebi aquela demanda? — murmuro para mim mesmo, ao olhar para a primeira demanda na lista.
— Eu aceitei aquela por ti, enquanto estavas a brincar às enguias.
— Podes aceitar demandas por mim? — olho especado para o Ali. — Quanto controlo é que te dei, na realidade?
— Não o suficiente, sortudo — o Ali sorri, antes de encolher os ombros. — Sou teu Companheiro, não posso fazer nada para te magoar e tu ias sair daqui de qualquer maneira, era indiferente se a aceitava ou não.
— Está bem. Mas avisa-me, pode ser? Não gosto de surpresas dessas — fecho o separador e olho para ele durante mais algum tempo. — O que é exatamente um Companheiro?
— Finalmente! Sou um Companheiro do sistema, um tipo de Espírito para ser preciso. Como Companheiro atribuído pelo Sistema, tenho acesso à tua interface e a certos aspetos do Sistema a que os utilizadores, em geral, não têm. Estamos ligados, por isso, quando ficares mais forte, eu também recebo mais habilidades. A Nível 2, tenho acesso à informação sobre os monstros que estão no Sistema, à nossa volta. Mais tarde, vou ser capaz de te fornecer mais detalhes e, a níveis ainda mais elevados, vou poder partilhar a minha Afinidade Elementar e até posso ganhar um corpo.
Faço um aceno para agradecer e fico em silêncio, a ponderar o que ele disse. Parece que tê-lo como Companheiro ligado é mais poderoso do que julgava. Mesmo assim, ainda há muito para aprender.
— Há um ficheiro de Ajuda?
Ele mexe uma mão e uma caixa azul gigante de textos aparece à minha frente. Eu refilo e entro ainda mais para dentro da gruta para começar a ler. Horas mais tarde, tenho uma melhor compreensão do básico. Os atributos básicos são bastante óbvios. Contudo, curiosamente, a Resistência determina não só a minha Vida básica, como também o quão rapidamente me curo. Basicamente, os pontos saram à mesma velocidade por minuto. A Inteligência determina o tamanho da minha reserva de Mana, ao passo que a Determinação atualiza essa reserva a cada minuto, com base no seu valor estatístico. É claro que não sei se isso é muito útil neste momento, visto que não tenho nada que utilize Mana, mas a informação é boa na mesma.
O mais interessante é que a Vida não é apenas o quão saudável estou fisicamente. Na verdade, é um valor numérico para a quantidade de danos que o Mana embutido no meu corpo iria absorver, atenuando os danos que sofro. Não impediria uma morte súbita, se enfiassem uma picareta no meu cérebro, mas reduziria a força do impacto da picareta, se tivesse uma reserva de Vida suficientemente grande. Claro que isso esgotaria algum do Mana embutido, reduzindo a minha Vida a um ritmo mais drástico. É muito estranho, principalmente porque o Mana embutido é completamente diferente do Mana que posso usar em feitiços. Enquanto luto contra outro bocejo, recorro a mais informações sobre as coisas que vi no quadro de estatísticas.
As habilidades de classe são habilidades especiais, que dependem do Mana para produzir os seus efeitos. No geral, podem infringir muito ou pouco as leis da física, dependendo da própria habilidade. Alguns dos exemplos fazem-me lembrar filmes de ação ou anime. A habilidade de gerar fogo nas minhas mãos ou ter um corpo blindado parecem-me fixes.
Os feitiços, por outro lado, eram apenas isso, feitiços de magia que utilizam Mana para serem lançados. A distinção entre o que é considerado uma habilidade e o que é considerado um feitiço parece-me um pouco arbitrário, mas talvez se torne mais claro quando receber um deles.
E as Regalias... Bem, as Regalias são coisas que se ganham por completar demandas especiais ou apenas por estar no lugar errado à hora errada, ao que parece. Pequenas ou grandes vantagens em relação a uma pessoa normal, sem regalias.
Agora, temos números, pontos para dizer quem somos, o que somos, aquilo em que, supostamente, somos bons ou maus. Tinha dado jeito, quando era mais novo, poder apontar para um ecrã e dizer “eu não sou quem vocês pensam” ou teria sido a mesma coisa? Se a minha vida tivesse sido ditada por este Sistema, será que teria tentado aumentar o meu Carisma ou teria treinado mais para ser mais forte? Teria falhado menos porque me teria concentrado em coisas às quais já era bom? Ou será que não teria feito a diferença?
Suspiro, esfregando os olhos. Ainda há tanto para ler, tanto para aprender sobre este estranho mundo novo. Quero ler mais, mas já não consigo lutar contra a exaustão e os meus olhos começam a fechar-se.
Capítulo 3
Parabéns. Sobreviveste um dia inteiro! Os humanos são mesmo uma raça excelente. Apenas 60% de vocês morreram, ontem. Estamos impressionados. Merecem um biscoito. E alguma experiência. Lembrem-se, os monstros vão aumentar durante a próxima semana.
— 60%! — fecho os olhos, enquanto a minha mente tenta processar o significado daquele número. 60%, mais de quatro mil milhões de mortos. 60%, seis em cada dez pessoas que já conheci estão mortas. Seis em dez ... Isso significa que a minha família está morta, uma vez que eu estou vivo. Este último pensamento faz-me respirar com dificuldade, um abismo de dor a surgir. Tenho evitado pensar neles, no que este Sistema significa para o mundo, mas, com este anúncio, o sofrimento, a raiva e o arrependimento estão a acumular-se. O abismo de dor e as emoções conturbadas aumentam ainda mais, antes de serem afastadas e postas de lado, reprimidas. Não tenho tempo para lidar com isto agora, tenho coisas para fazer, a minha própria existência para manter.
— Sabes, chorar é considerado algo muito masculino nas culturas de Kraska. Se bem que eles parecem os vossos crocodilos terrestres — o Ali flutua acima de mim e observa como lido com os meus pensamentos, antes de fazer desaparecer a notificação. — Vamos, rapaz!
— Dá-me um momento — murmuro.
— Não vais mesmo chorar, pois não? — pergunta o Ali, virado de cabeça para baixo, completamente aborrecido.
— Não, não vou — afirmo com confiança. Consigo sentir o sofrimento, se me concentrar nele. Tal como a maioria das minhas emoções, está silenciado, como se houvesse um cobertor pesado sobre uma coluna. Está ali, apenas difícil de aceder. É o suficiente para eu funcionar, pelo menos, no geral. Mas consigo perceber, mesmo assim, que o sofrimento se está a misturar com a maré de raiva em que vivo.
Raiva...
— Ali, encontra algo para eu matar — afirmo calmamente e levanto-me com a mochila na mão. — Encontra montes de coisas para eu matar — por uma vez, o Ali não me responde e faz o que lhe peço.
***
— Está morto — o Ali tenta apaziguar-me, quando dou uma última facada no esquilo-terrestre. Talvez tenha exagerado um bocadinho, o animal está desfeito. Ainda bem que a função de saquear não tem em consideração o estado do corpo da criatura e deu-me o prémio sem as feridas de faca bastante sórdidas.
— Ali, como é que consigo uma arma melhor? — observo a minha faca e a criatura. Felizmente, satisfiz os meus desejos de miúdo e escolhi uma faca de mato. Para dizer a verdade, era demasiado apenas para acampar, mas estava numa fase de Rambo quando a comprei. Agora, é a minha única arma. Bem, isso e uma lata de spray contra ursos.
— Na Loja do Sistema. É num local seguro gerado pelo Sistema que, atualmente, só existe em Whitehorse. Mas vais ter de vender o teu saque para a conseguir, a não ser que ganhes alguns créditos do Sistema, algo que apenas os sencientes recebem — o Ali continua a explicação. — Ainda tens de deitar cá para fora os teus sentimentos?
— Vamos sair daqui — abano a cabeça, a raiva finalmente a acalmar. Não sei bem o que diz sobre mim, o facto de ter descarregado naquelas criaturas. Mas, por agora, vou evitar pensar nisso. Já vamos a meio da manhã e ainda não consegui fazer muitas mortes. Caçar está a tornar-se cada vez mais perigoso, uma vez que até as criaturas da Terra se estão a mutar a um ritmo mais acelerado, superando o meu nível e a minha faca patética.
— Muito bem, miúdo, o mesmo de ontem — o Ali faz sinal para o caminho e eu sigo as indicações dele.
***
Com a faca empunhada à minha frente, salto e atiro-me para baixo. O MFQ desativa-se no último segundo, quando enfio a faca na cabeça da lebre americana. Espero ter acertado em algo importante, visto que a lebre é do tamanho de um cavalo, mas muito mais larga. Ela vira a cabeça e é apenas um bocado de pelo que agarrei à pressa que me mantém em cima dele, enquanto lhe espeto a faca repetidamente na parte de trás da cabeça e do pescoço.
Um minuto depois, tinha feito estragos suficientes para a lebre cair, morta. Há alguns momentos, ela tinha finalmente conseguido tirar-me de cima dela, esmagando-me contra um pinheiro, partindo-me o ombro e fazendo-me soltá-la. Deitado no chão, cheio de dores, não consigo deixar de pensar porque teria o Ali insistido tanto para eu lutar contra a lebre. Dou voz aos meus pensamentos, enquanto os ossos regeneram e voltam ao sítio. Ao forçar-me a sentar debaixo de uma árvore e ao tirar outra barra de chocolate da mochila, sinto-me feliz por trazer sempre demasiado chocolate comigo.
— Lebre? Achava que era um coelho — o Ali olha com desagrado, flutuando por cima da criatura. — Bolas! E eu que queria dizer: “Não se passa nada, meu”.
***
— Baixa-te!
Deito-me no chão e sou atirado para o lado, quando a criatura vai contra a minha mochila. Estamos a descer a montanha a um bom ritmo, com o Ali a avisar-me da chegada de monstros. Rebolo, ficando frente a frente com uma bola de pelo raivosa com demasiados dentes. Enfio o bastão de caminhada na barriga dele e a criatura começa automaticamente a morder a vara de metal. Estou a fazer força, pregando a criatura ao chão, quando esta começa a sufocar.
— Mexe-te!
Salto, soltando o bastão, quando outro monstro felpudo me ataca do outro lado. Estava demasiado focado em matar o primeiro. Ataco com a minha faca, cortando o pelo áspero e afasto-me aos tropeções, a agitar a arma desesperadamente.
— À tua direita — o Ali avisa e olho para a direita, usando as costas da mão para atacar o terceiro monstro Tribble. O golpe acerta-lhe e ele vai a rebolar pela colina. O segundo monstro aproveita a minha breve distração como um sinal para me morder a perna e eu grito de dor, espetando-o com a minha faca uma e outra vez, até ele me libertar.
Afasto-me, coxeando para onde o primeiro monstro felpudo continua a asfixiar e a tossir e mato-o, pisando a criatura repetidamente, até esta parar de respirar.
— Atrás de ti outra vez — avisa o Ali, já aborrecido.
Viro-me, levantando o braço a tempo de o deixar morder o meu antebraço, em vez da minha cara, e depois começo a esfaqueá-lo até à morte.
— Bem, essa é uma forma de matar monstros. Tenta não os deixar morder tanto, na próxima luta — o Ali salienta, prestavelmente, e eu olho furioso para ele, enquanto saqueio as bolas de pelo. A sério, cotão? É esse o meu saque? Cotão? Mas o que esperava de bolas de pelo? Atiro-as para o inventário com uma careta e começo a coxear em direção a um riacho que me lembro de ser aqui perto.
Lavo a minha roupa o melhor que consigo no riacho, com o Ali a vigiar, por cima de mim. Trabalho depressa, livrando-me da maior quantidade de sangue possível, sem encharcar demasiado a roupa. Quer seja de lã ou não, não deixa de estar molhada e o início de abril em Kluane significa que as temperaturas vão rondar os 6ºC à sombra. Enquanto me limpo, pergunto ao Ali algo que me tem incomodado. — Ali, porque é que os monstros nunca te atacam?
— Eles não me conseguem ver — responde o Ali.
Franzo as sobrancelhas.
— Mas naquela primeira vez...
— Eu consigo tornar-me visível com algum esforço, mas não o consigo fazer durante muito tempo, pelo menos, ainda não — o Ali faz uma pausa, virando-se para Este antes de falar. — Está na altura de irmos, jeitoso. Vamos ter companhia.
Levanto-me depressa, sacudindo a água das minhas mãos e correndo devagar para Sudoeste, dando o meu melhor para ser o mais silencioso possível.
***
O sol já quase se pôs quando finalmente chego ao parque de estacionamento. O que deveria ter sido uma caminhada de meio dia transformou-se num tormento de dois dias. Não me surpreendo ao ver o que sobra do meu veículo queimado, apesar de o sibilo da palavra “salamandra” me dar uma ideia do que possa ter causado o problema. Ou daria, se eu soubesse o que é uma salamandra.