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A Morgadinha dos Cannaviaes
Henrique estava achando igualmente curiosa a indignação do homem e a alvoroçada anciedade do povo.
Ha de facto poucas scenas tão animadas, como a da chegada do correio e da distribuição das cartas em uma terra pequena. Durante a leitura dos sobrescriptos, feita em voz alta pelo empregado respectivo, um observador, que estude attento as impressões que essa leitura opéra nos semblantes dos que ávidos a escutam, como que vê levantar-se uma ponta de cortina, corrida a occultar-nos as scenas da comedia ou da tragedia da vida de cada um.
Que hora de commoções aquella, em que se abrem as malas, onde veem encerrados porventura os destinos de tantas pobres familias! Quantas vezes verdadeira boceta de Pandora, d'onde se espalham as desgraças e os pezares!
Nas grandes cidades dispersam-se estas commoções; passam-se no recato dos gabinetes de cada um. Lembrem-se porém das vezes, em que teem segurado com mão trémula na correspondencia, que o correio lhes traz; no anciar do coração com que lhe rasgam o sêllo; nas lagrimas ou sorrisos com que lhe interrompem a leitura; no irresistivel movimento de desespero com que a amarrotam depois, ou nas expansões apaixonadas com que beijaram o nome que a subscreve; lembrem-se d'isso, multipliquem depois esses affectos todos, despojem-os das reservas que a etiqueta impõe ás classes mais civilisadas, façam-os manifestarem-se n'um mesmo momento e n'um mesmo logar, e digam se concebem muitas outras scenas, em que mais sentimentos e paixões se agitem em lucta travada.
Chegou emfim o homem das cartas, e a custo conseguiu romper até ao mostrador, onde pousou a mala. O «director», depois de tossir, de assoar-se, de suspirar e de limpar os oculos com umas delongas, que formavam com a anciedade do povo um contraste desesperador, abriu fleugmaticamente o sacco, extrahiu um não muito volumoso masso de cartas, que despejou n'um cesto de vime, e tomou apontamentos.
Era digno do pincel de um artista aquelle grupo de physionomias, que seguiam ávidas todos os movimentos de mestre Bento. Olhos e bôcas abertas, mãos juntas, pescoços estendidos, a cabeça inclinada para receber o menor som, tudo caracterisava profundamente a anciedade que lhes dominava os animos.
Mestre Bento Pertunhas achou a occasião apropriada para dizer a Henrique:
– Pois, senhor, eu nasci para artista. Quasi sem mestre aprendi a tocar trompa e, não é por me gabar, mas prezo-me de tocar com certo mimo e expressão.
Henrique volveu o olhar para o auditorio; apiedou-o a consternação d'aquellas physionomias. Resolveu valer-lhe.
– Tem a bondade de vêr se ha alguma carta para mim?
– Ah! pois já as espera hoje?
– Não é provavel; porém…
Mestre Bento Pertunhas, em vista d'isto, começou em voz lenta e fanhosa a leitura dos sobrescriptos.
Seguiu-se novo e não menos interessante espectaculo.
A cada nome proferido, erguia-se quasi sempre uma voz, ás vezes um grito; estendia-se por cima das cabeças um braço, e, podemos accrescentar ainda que se não visse, alvorotava-se um coração.
Outros, os não nomeados ainda, olhavam com anciedade para o masso, que diminuia, e cada vez mais se lhes assombrava o semblante.
– Luiza Escolastica, do logar dos Cójos – lia mestre Pertunhas.
– Sou eu, senhor, sou eu; ai, o meu rico homem! – exclamou uma mulher joven, apoderando-se ávidamente da carta.
– Joanna Pedrosa, de Serzedo – continuava elle.
– Aqui estou; será do meu Antonio, senhor? – disse uma velha, pobremente vestida.
– Será do seu Antonio, será – respondeu o insensivel funccionario; – o que lhe posso dizer é que traz obreia preta.
A mulher, que já tremia ao receber a carta, deixou-a cair, ouvindo aquellas sinistras palavras. Apanharam-lh'a; e ella, tomando-a, saiu da loja, a chorar lastimosamente.
– Se foi o filho que lhe morreu, não sei o que ha de ser d'ella – disse um dos circumstantes.
– Coisas do mundo! – respondeu outro.
Estes commentarios foram interrompidos pela continuação da leitura.
– João Carrasqueiro.
– Prompto, senhor – bradou um velho.
– A mezada, hein? – disse Bento Pertunhas, fitando-o por cima dos oculos. – O rapaz não se esquece.
– Deus Nosso Senhor o ajude, que bem bom filho tem saido.
– D. Magdalena Adelaide de…
– É a morgadinha, é a morgadinha – disseram a um tempo muitas vozes.
– Agradecido pela novidade; era cá muito precisa a explicação – disse o Pertunhas: e passando a carta para uma mulher, que era a encarregada de fazer a distribuição a quem a podia gratificar, accrescentou:
– Leve-lh'a a casa.
E proseguiu:
– Augusto Gabriel…
– É o mestre-escola…
– Ora fazem o favor de estar calados! Esta… como elle vem por aqui… pode ficar… ainda que… será melhor levar-lh'a a casa, leve, leve tambem…
– João Cancella.
– É o João Herodes.
– Esse foi a Lisboa.
– Então, quando vier, que appareça.
– O tio Zé P'reira ficou de receber as cartas. É compadre d'elle.
– Eu não quero saber de compadrices. O tio Zé P'reira que se occupe com o seu zabumba e deixe lá os outros.
A leitura mais ou menos acompanhada d'estes dialogos proseguiu, redobrando de momento para momento a anciedade dos que iam ficando. Um fundo suspiro, unisono, melancolico, expressivo de desalento, seguiu-se á leitura do ultimo nome e ás poucas palavras, com que o funccionario fechou a tarefa.
– E acabou-se.
Os que ainda estavam na loja sairam cabisbaixos, morosos e com tão má vontade, como se ainda tivessem esperança de commover a inexoravel sorte.
Henrique, ficando só com Bento Pertunhas, teve de lhe escutar ainda, por muito tempo, a narração dos seus passados triumphos artisticos, das suas amarguras presentes no magisterio, e das suas esperanças em melhoramentos futuros. Entre as ambições mais inquietas do mestre, a de obter o logar de recebedor de comarca, proximo a vagar por a morte imminente do respectivo empregado, figurava em primeira linha.
Depois de varias tentativas, Henrique conseguiu deixar o seu interlocutor, e continuou o passeio que este episodio interrompera, tão satisfeito e distrahido, que nem apprehensões lhe causava a ideia de trazer as botas humedecidas pelas hervas do caminho, ideia que, em outra occasião, bastaria para o fazer doente.
Ladeava elle um campo, cingido de altas silvas, a procurar saida para a deveza, da qual um fundo vallado o separava, quando lhe pareceu ouvir um rumor de vozes, como de alguem, que conversasse perto d'alli.
Parou a certificar-se.
Não se enganára. Era do outro lado da sebe, e na deveza, para onde tentava passar, que se estava falando.
Espreitou por entre as folhas do silvado que o encobria, e viu uma scena, que lhe moveu a curiosidade.
Um grupo de creanças e de mulheres do povo escutavam em pleno ar e com religiosa attenção, a leitura que uma senhora joven e elegante lhes fazia das cartas, que ellas para esse fim lhe davam. A senhora estava montada, não como romantica amazona, em hacanêa fogosa, mas modesta e simplesmente n'um digno exemplar d'aquelles pacificos animaes, a que Sterne não duvidou dedicar algumas palavras de sympathia nas suas paginas mais humoristicas, e que Pelletan incluiu entre os collaboradores da humanidade na grande obra do progresso, ou, deixando a periphrase, em uma possante e bem apparelhada jumenta.
Á roda as ouvintes encostavam-se com familiaridade ás ancas e ao pescoço do immovel quadrupede.
A leitora segurava no collo a mais pequena e a mais nua das creanças do rancho.
Lia com voz agradavel e sonora; e, graças á serenidade da manhã e ao socego do logar, ouviam-se distinctas, á distancia que ficava Henrique, as palavras, que ella pronunciava lentamente, como para as deixar penetrar bem na intelligencia do auditorio.
Henrique reconheceu muita d'esta pobre gente, por a mesma que, momentos antes, vira na casa do correio.
Mas as suas attenções voltaram-se com especialidade para a leitora.
Era uma mulher muito nova ainda. Uma graciosa figura de mulher, suave, elegante, distincta, um d'esses typos que insensivelmente desenha uma mão de artista, quando movida ao grado da livre phantasia; a côr, essa côr inimitavel, onde nunca dominam as rosas, mas que não é bem o desmaiado das pallidas, encarnação surprehendente, a que ainda não ouvi dar nome apropriado.
Os cabellos em fartas tranças, em ondas naturaes, não de todo pretos, porém, mais distinctos ainda dos louros; a estatura esbelta, sem ser alta, o corpo flexivel, sem ser languido; um vulto de fada, emfim, com a magestade, com a graça que deviam ter estas creações da poesia popular, se fôsse certo tomarem a fórma de virgens, para matar de amores.
Não se concebe attenção tão distrahida, que esta mulher não fixasse; olhos, que se não voltassem para seguil-a, depois de a vêr passar; coração, que não se perturbasse na sua presença.
Trajava um singelo vestido de xadrez branco e preto, adornado no collo e punhos apenas por collarinhos lisos. Descaía-lhe natural e elegantemente dos hombros um chale de casimira escura, sem lhe occultar as bellezas da airosa conformação; o chapéo de palha de largas abas, cobrindo-lhe a cabeça, espalhava pelo rosto as meias tintas, tão favoraveis ás bellezas delicadas.
Henrique comprehendeu logo a significação da scena, a que, tão inesperadamente, viera assistir. Aquella mulher parára alli, para ler a essa gente pobre e ignorante, as cartas que haviam recebido do correio.
Tambem era caridade a acção, muito mais cumprida com o bom modo e com o carinho com que ella o fazia.
Henrique applicou a attenção.
– …«E por isso, minha mãe» – lia ella – «se Deus me ajudar, espero dentro em pouco ir a essa terra e darei remedio a tudo. E não me fale vossemecê mais em vender o cordão e as arrecadas. Diga ao senhorio que tenha paciencia, que eu satisfarei a tudo.»
Aqui a leitora parou para perguntar:
– Então que historia é esta das arrecadas, Anna?
– É, senhora, que o aluguer estava vencido…
– E não podia falar-me antes de se lembrar do seu filho?
– Ora, senhora, bem basta o que…
– Fez mal. Estar a affligil-o com estas coisas! Elle que precisa de toda a coragem!
E continuou a ler a carta, no meio das lagrimas e das expansões de alegria da ouvinte, mais interessada n'ella.
Acabando, deu um beijo na creança, que tinha ao collo, e estendeu a mão a receber a carta, que outra mulher do grupo lhe passou. Esta era menos de consolar. Não se falava alli senão de contratempos, de revezes e desesperanças. Mais do que uma vez teve de suspender a leitura, para mitigar a dôr e enxugar as lagrimas, que ella estava produzindo na pobre mulher, a quem era dirigida.
Após esta, ainda outra e outra; uma do marido para mulher; outra de filho para mãe; outra de noivo para noiva.
Foi com o riso nos labios e inoffensiva malicia nas inflexões da voz e no olhar, que ella decifrou os mal legiveis caracteres, com que em papel bordado, pintado e recortado, vinham expressos os mais arrebicados conceitos amorosos, que ainda dictou uma paixão.
A noiva córava, sorria; mas, no meio da sua modesta turbação, era evidente que estava exultando de jubilo.
Com esta terminou a leitura.
Henrique não resistiu a esboçar rapidamente o gracioso grupo na carteira, que trazia comsigo. Não pôde, porém, deixar de dar-lhe um sabor de idade média, substituindo a jumenta por um palafrem de pura raça e dando á donzella, pelos trajes com que a desenhou, os ares de uma castellã rodeada dos seus vassallos.
Não lhe bastou o natural do quadro, quiz revestil-o de um figurino de convenção. Perdôe-lhe a arte, que julgou servir.
Depois de distribuir mais alguns beijos pelas creanças, a gentil rapariga passou a que tinha no collo para os braços da mãe e partiu rodeada de agradecimentos e bençãos, perdendo-a Henrique de vista, por entre as arvores do caminho.
Aquelle typo delicado de mulher, aquella singeleza do apurado gôsto, em que não podiam enganar-se olhos conhecedores, como os d'elle, aquella preciosa perola alli na aldeia! em uma terra para chegar á qual era necessario fazer uma comprida e laboriosa jornada! D'onde viera ella e como? que nuvem a trouxera? que viração a transportára?
Em tudo isto ficou a pensar Henrique, e quando se lembrou de que podia, para esclarecer-se, interrogar alguem do grupo, já não ia a tempo; tinham dispersado.
Conseguiu finalmente passar para a deveza, e foi sentar-se no logar, em que lhe apparecera a visão e ahi se demorou algum tempo; mas lembrando-se de que eram quasi onze horas, levantou-se para não faltar ás promessas feitas á tia Dorothéa, e que eram: a de visitar as senhoras do Mosteiro e a de estar em casa pouco depois do meio dia, para não transtornar a regularidade dos habitos domesticos em Alvapenha.
Pediu pois a uma creancinha que passava, que o guiasse á quinta do Mosteiro, e ahi chegou depois de um quarto de hora de caminho.
IV
A casa do Mosteiro, com a quinta annexa á casa, como o dava a entender o nome, pelo qual o povo a conhecia, tinha pertencido em tempo a uma ordem monastica.
Era um d'estes conventos campestres, que hoje ou se encontram em ruinas ou transformados em solar de alguma notabilidade provinciana. Ao de que falamos coubera o ultimo destino.
Incluido, depois do acto dictatorial de 1834, na lista dos bens nacionaes, fôra, por insignificante preço, vendido a um modesto proprietario das immediações, mais arrojado do que os vizinhos, ou mais convencido da estabilidade da nova ordem de coisas politicas, que se inaugurava no paiz.
E em tão auspiciosa hora lhe acudira aquella inspiração, que, em pouco tempo, lhe restituia a quinta o capital empregado, regalando-o todos os annos com não calculados juros, e elle, sem intermittencias, cresceu d'ahi por deante em prosperidade a ponto de deixar, ao morrer, a familia no numero das mais abastadas d'aquella terra.
A propriedade do Mosteiro, apesar de varios melhoramentos e reformas effectuados n'ella, offerecia, ainda claros, muitos vestigios de seus primitivos usos. Não era raro encontrar-se, aqui e alli, em pé uma cruz de pedra marcando antigos logares de devoção; no alto de algumas portas conservava-se visivel o emblema e divisa da ordem, ou restos de inscripções latinas; nas paredes da arcaria, em que se apoiava a face posterior do edificio, mantinha-se ainda um azulejo contemporaneo dos frades; finalmente resistira a successivas reformações certo colorido monastico, que só após muitos annos se dissiparia de todo.
Entrava-se para a propriedade por uma larga, comprida e magestosa álea de sobreiros seculares, alcatifada de relva, que, sobretudo dos lados, por pouco trilhada, crescia espêssa e verdejante. Abria-se, ao fim d'esta rua, o alto portão do pateo.
Henrique, deixado só pelo guia ao chegar alli, foi caminhando vagarosamente por esta avenida, dominado por a intima commoção e sentimento quasi de temor, que se apodera de nós, em todos os logares a que se ligam memorias do passado.
A phantasia estava-o transportando a tempos, a que não chegavam já as suas recordações, ás épocas, em que, por entre estas arvores gigantes, se via passar, como um phantasma, o habito escuro do monge, cuja sombra o sol, ao declinar no horizonte, tantas vezes projectou, esguia e estirada, ao longo d'aquella mesma avenida.
Impressionado por esta ordem de pensamentos, chegou Henrique ao portão, transpondo o qual se introduziu no pateo. Era um largo terreiro de perfeita fórma rectangular, limitado ao fundo pela fachada da casa, e lateralmente por elevadas paredes, armadas á maneira de pannos de Arrás, com tapeçarias de vigorosas heras. A cada uma das paredes encostavam-se dois tanques de vasta capacidade.
No tempo dos frades vomitavam, sem cessar, as feias e enormes carrancas de todos estes quatro tanques grossos jorros de fresca e purissima agua; porém as medidas economicas do ultimo proprietario e as exigencias dos seus projectos agricolas haviam derivado para outros fins, parte d'esta abundante veia, de maneira que tres d'aquellas bacias estavam agora completamente a sêcco.
Os fetos de folhas recortadas, as pegajosas parietarias, os funchos odoriferos, havia muito que tinham invadido a bôca dos encanamentos inuteis onde encontravam asylo imperturbado lagartos, aranhas e myriapodes, e se estabeleciam pacificas colonias de caracoes.
A fachada do ex-mosteiro nada tinha de notavel pelo lado architectonico. A arte não tivera fadigas, ao concebel-a; o cinzel pouco se embotára a executal-a; nem uma columna singela, nem um florão, nem um tympano lhe davam a menos pretenciosa apparencia monumental. Imagine-se uma vasta casaria de um andar além do terreo, com muitas janellas de peitoril e uma só varanda de pedra sobranceira á porta principal; acima do telhado, uma especie de agua furtada, de construcção evidentemente posterior e aconselhada aos proprietarios modernos por conveniencias de accommodação domestica; e ter-se-ha concebido o edificio.
Emquanto Henrique se occupava a examinar estas particularidades, um velhito, que, sentado em um banco de pedra, que havia á porta de casa, se estava aquecendo ao sol, ergueu-se e veio ao encontro do recem-chegado, tossindo e arrastando os passos.
Junto de Henrique, o velho, de apparencia meia rustica, meia urbana, depois de o saudar com grave cortezia, que deixou a descoberto o solideo fradesco com que resguardava a fronte calva, perguntou se havia alguma coisa, em que o pudesse servir.
Ouvindo, depois de repetida, a resposta de Henrique, que disse procurar as senhoras, com nova cortezia lhe fez signal para que o acompanhasse, e ambos atravessaram o pateo em direcção da casa.
No portal o velho afastou-se de lado com toda a deferencia para deixar passar Henrique; em seguida abriu-lhe a porta de uma primeira sala, e, voltando-se, pediu-lhe para que lhe dissesse quem havia de annunciar. Henrique deu-lhe para esse fim um bilhete de visita, cuja significação teve de explicar, porque o velho não a comprehendia bem.
A final porém retirou-se por outra porta, levando o bilhete.
A sala, em que Henrique ficou esperando, era toda mobilada com pesadas cadeiras de couro lavrado e alto espaldar, mesas de pés em espiral, e pelas paredes alguns ennegrecidos retratos de frades, pertencentes provavelmente aos antigos proprietarios do mosteiro.
No momento em que o velho servo, que era uma especie de feitor honorario da casa, abriu outra porta da sala, para ir annunciar á familia a visita de Henrique, chegaram aos ouvidos d'este, de mistura com um tinir de louças e de crystaes, as vozes e risos de creanças, que falavam ao mesmo tempo. Com a entrada do velho produziu-se um certo silencio, e após uma voz de mulher, de timbre fresco e agradavel, disse audivelmente e como em resposta ás palavras do criado:
– Ora as etiquetas com que esteve, Torquato! Mande entrar para aqui.
O feitor parece que resmoneou não sei o quê, a que ainda a mesma voz redarguiu:
– O que não é bonito é fazel-o esperar. Ande, vá.
Torquato – chamemos-lhe assim, visto que assim lhe chamaram – appareceu outra vez e fez signal a Henrique, de que o esperavam na sala immediata.
Henrique que presentiu ir achar-se na presença de uma mulher nova e porventura bonita, correu, com instincto de perfeito homem de côrte, os dedos pelos cabellos, afagou o bigode, ageitou rapidamente o laço da gravata e entrou.
Era completo o contraste d'este aposento com o primeiro; transpondo aquella porta dissipava-se todo o perfume antigo, todo o caracter de vetustez, que até alli reinava em tudo. Era moderno o estuque do tecto, modernissimo o papel que forrava as paredes, e a mobilia toda de um cunho de actualidade, visivel aos olhos menos pesquizadores. Como para tornar mais frizante o contraste, a presença do velho feitor estava aqui substituida por a de duas creanças, a mais velha das quaes mal passaria dos seis annos.
O reposteiro, que caiu atraz de Henrique, foi como que uma cortina corrida sobre o passado. A porta, que elle transpuzera, a barreira que separava dois seculos.
Sentadas no tôpo de uma longa mesa de jantar, coberta de louça fina ingleza, estavam as duas creanças que dissemos, com os seus babeiros brancos e tendo cada qual defronte de si um prato de odorifera sôpa. Em pé, á cabeceira, presidia ao lunch infantil uma mulher, de quem Henrique só pôde notar vagamente os contornos geraes do corpo e não as particularidades das feições, porque, ficando voltada de costas á luz das janellas, velavam-lhe o rosto umas meias sombras, que não favoreciam o exame.
Ao vêr entrar Henrique, ella disse-lhe jovialmente:
– Na aldeia a sala de recepções é aquella em que a gente se acha, quando lhe annunciam uma visita. É assim pelo menos que eu comprehendo o viver do campo.
– E é assim que eu o aprecio, minha senhora – respondeu Henrique, approximando-se da mesa.
As creanças, interrompendo a refeição, fitavam o recem-chegado com aquelles olhos espantados e penetrantes, com que ellas, promptamente, e quasi sempre com a certeza de um verdadeiro instincto, decidem para si das sympathias ou antipathias de que lhes é merecedor um estranho, a quem vêem pela primeira vez.
A mulher, que presidia ao banquete, não suspendeu com a entrada de Henrique a occupação domestica, na qual estava empenhada. Mostrava receber-lhe a visita com um perfeito «á vontade», que nada tinha porém de affectado.
– Não sei se v. ex.a sabe… – ia dizendo Henrique, quando, ao chegar perto d'ella, parou subitamente em meio da phrase.
Na mulher, que estava deante de si, reconheceu a leitora da deveza, a interessante rapariga, que tanto o preoccupára.
Era ella, era o mesmo vestido de xadrez, era a mesma cabeça, agora melhor apreciada ainda, porque nada havia a encobrir-lhe a fronte de um primoroso modelo, e os cabellos penteados com tanta graça como singeleza. Em vez do longo chale de casimira, trazia agora uma especie de jaqueta, curta e larga, apertada por alamares, de fórma pouco mais ou menos similhante á que, na nomenclatura das modistas, nomenclatura quasi sempre absurda, e de mau gôsto, teve depois a impropria e desastrada denominação de zuavo!
A surpreza de Henrique não passou despercebida a quem era causa d'ella e que lhe correspondeu com um gesto de curiosa interrogação.
– Perdão, minha senhora – disse Henrique, comprehendendo aquelle gesto – mas ignorava que vinha encontrar aqui uma pessoa, que já me não era estranha.
– E sou eu essa pessoa?
– É v. ex.a effectivamente.
– Pois já nos vimos?
– Já… quero dizer, eu já vi v. ex.a
– Pode ser; pela minha parte confesso-lhe que me não lembra de o ter visto nunca. Apesar d'isso sei que é o sr. Henrique de Souzellas, sobrinho d'aquella boa senhora de Alvapenha, a tia Dorothéa; não é verdade?
– Eu proprio. O conhecimento que tenho de v. ex.a não é antigo tambem; data de algumas horas apenas.
A interlocutora de Henrique, ouvindo isto, contrahiu levemente as sobrancelhas bem desenhadas, fez um movimento de labios e deu á cabeça uma ligeira inclinação sobre o hombro, d'onde resultou para aquella gentil physionomia a mais adoravel expressão de estranheza, que pode animar um semblante de mulher.
– Esta manhã – proseguiu Henrique, a quem os encantos d'aquelle gesto não tinham passado despercebidos – assisti a uma scena commovente. O logar era uma deveza; uma joven senhora… joven e… e com outras qualidades, além d'esta, para excitar attenções, lia, em voz alta, as cartas que algumas pobres mulheres do povo acabavam de receber pelo correio…
Ella não o deixou continuar.
– Ah! entendo agora. Viu-me? Já andava por fóra? Não o suppunha assim madrugador. Mas onde estava tão escondido? Vejo que é indiscreto… Não admira, habitos da cidade. É verdade, é. Aquella gente encontrou-me no caminho quando eu voltava de uma visita a uns parentes pobres, e não me deixou sem que eu lhe abrandasse a ancia de coração que a affligia. Coitados! Que havia eu de fazer? Diga-me, já pensou no supplicio que deve ser olhar a gente para uma folha de papel escripta, na qual sabemos que se fala de uma pessoa querida, e não ter poder para decifrar aquelle enygma? Que martyrio! Eu por mim, confesso que me falta o animo para recusar pedidos d'aquelles, como me faltaria para negar uma gotta d'agua ao desgraçado que visse a morrer de sêde. A crueldade seria quasi igual. Não lhe parece?
Henrique formulou um galanteio, que ella porém não ouviu, entretida já a escutar o que uma das creanças lhe dizia.
– Lena, olha a Annica, que está a deitar a sôpa d'ella no meu prato.
– Deixa falar, Lena, deixa falar, foi ella que primeiro a deitou no meu. Não tem vergonha de mentir!