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A Morgadinha dos Cannaviaes
A Morgadinha dos Cannaviaes

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A Morgadinha dos Cannaviaes

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– Não é possivel – teimou Henrique, e insistiu para se recolher ao quarto.

– Tens razão, tens – concordou a tia Dorothéa – deves estar fatigado. Vae com Nossa Senhora, menino. E deixa-te lá de pensar e estar triste, que isso não é bom. É fazer por espairecer. Come, bebe, passeia, que é o que dá saude. Nada de malucar.

– Sim – accrescentou a criada – e não queira estar doente, que não tem graça nenhuma.

– E olha, Henriquinho, tu tens por ahi com quem te podes distrahir. O brazileiro Seabra, que tem uma casa como um palacio; o Augustito do doutor, que é um bom mocinho. E depois vae dar um passeio por ahi, um dia até os moinhos outro dia até á ermida da Senhora da Saude. Agora me lembra: a Lenita já mandou ahi outra vez saber se tinha chegado o hospede – disse D. Dorothéa.

– Não foi só a morgadinha…

– Ahi está você a chamar-lhe tambem a morgadinha.

– Então, senhora?! isto é o costume. Mas todas as outras senhoras mandaram tambem o Torquato saber do sr. Henrique. A sr.a D. Victoria e a Christininha.

– Ai, pois cuidadosas são ellas! Tu has de te entender com aquella gente. É uma gente muito dada e sem ceremonia. É preciso lá ir. Olha, ámanhã podes ir visital-as. É um passeio bonito.

Henrique, que tinha estado distrahido durante a conversa das duas, nem se dava ao trabalho de intervir no dialogo em que ellas dispunham já do seu tempo e traçavam-lhe planos de vida.

– Mas vae descançar, menino, vae e faze por dormir. Olha lá, tu costumas dormir com luz?

– Não, tia, não costumo.

– É porque n'esse caso… Ó Maria, onde está aquella lamparina, que me serviu quando eu estive doente, ha seis annos?

– Está lá dentro, senhora; se a senhora quer eu…

– Vê lá, menino…

– Não tia, não quero.

– Ha pessoas que não podem dormir ás escuras – dizia a criada. – Eu, graças a Deus, durmo bem de qualquer fórma.

– Pois sim, mas nem todos são como você. Olha, ó Henriquinho, has de vêr se queres o travesseiro mais alto ou…

– Muito agradecido, tia Dorothéa, tudo deve estar bom – disse Henrique, procurando fugir ás muitas reflexões, perguntas e conselhos, com que as duas o iam perseguindo até o quarto.

– Olha, ó menino, tu bebes agua de noite?

– Ás vezes.

– Você poz-lhe agua no quarto, Maria?

– Puz, sim, minha senhora; pois então? Já minha mãezinha dizia, que antes sem luz do que sem agua.

– Bem, então está bom. Então muito boa noite, menino.

– Boa noite, tia.

– Ai, é verdade. Has de vêr se queres mais roupa na cama.

– Não hei de querer, não, tia.

– Olha que está muito frio. Você quantos cobertores lhe deitou, ó Maria?

– Cinco, senhora.

– Cinco! – exclamou Henrique, quasi horrorisado. – Cinco cobertores!

– É pouco?

– Pouco? – É de morrer esmagado debaixo d'elles.

– Ai, quer não! Olha que está muito frio.

– Bem, bem; eu cá me arranjarei.

– Então, muito boa noite.

– Muito boa noite, tia.

E Henrique ia a fechar a porta.

– Olha… – disse ainda a tia.

Henrique parou.

– Não sei o que é que me esquece…

– Não ha de ser nada, tia; boa noite.

– Não esquecerá?.. Eu sei?.. Emfim… boa noite. Ai, é verdade… Sempre é bom ficar com lumes promptos.

– Ai, sim; lá isso sempre é bom.

– Vês? não que bem me parecia.

– Já lá estão, senhora – disse a criada de longe.

– Melhor; então muito boa noite nos dê Nosso Senhor, menino.

– Muito boa noite, tia.

E Henrique conseguiu fechar a porta.

Estava finalmente só.

– Que desastrada lembrança a minha! – disse o pobre rapaz, ao fechar a porta sobre si. – Como posso eu viver com esta santa e virtuosa gente, que chama manias aos meus padecimentos? Que futuro de impertinencias me espera! Ai, Lisboa, Lisboa, e pensar eu que só posso voltar para ti á custa de outra jornada!

O quarto de Henrique era arranjado com simplicidade. Um alto leito de almofadas na cabeceira e rodapé de chita, tão alto que se não dispensava o auxilio de cadeira para trepar acima d'elle, uma commoda com um pequeno espelho, um bahú, um lavatorio e duas cadeiras mais, constituiam a mobilia toda.

Henrique de Souzellas sentiu a falta de mil pequenos objectos de toucador, a que estava habituado. Aquelle estrictamente necessario não lhe promettia grandes confortos.

Deitou-se. A roupa da cama era de linho alvissimo e respirava um asseio e frescura convidativos: os travesseiros, de largos folhos engommados, possuiam uma molleza agradavel ás faces; o colchão de pennas abatia-se suavemente sob o peso do corpo fatigado.

Henrique conchegou a roupa a si; á falta de velador, pousou o castiçal no travesseiro, e, abrindo um livro que trouxera de Lisboa, poz-se a ler, para obedecer a um habito adquirido.

Não teria ainda lido um quarto de pagina, quando ouviu a voz da tia Dorothéa, que lhe dizia de fóra da porta:

– Ó menino, tu já te deitaste?

– Já, sim, tia Dorothéa.

– Olha se tens cautela com a luz. Eu tenho um mêdo de fogos!

– Esteja descançada, tia. Eu apago já.

– Então será melhor. S. Marçal nos acuda.

E afastou-se, rezando ao santo.

Henrique continuou a ler.

D'ahi a pouco a mesma voz:

– Tu já dormes, Henriquinho?

– Não, tia, ainda não durmo.

– Olha que não vás adormecer sem apagar a luz. Eu tenho um mêdo de fogos! Não descanço, emquanto não vejo tudo apagado em casa.

Henrique perdeu a paciencia.

– Pois pode socegar, olhe.

E apagou a véla, meio zangado.

– Fizeste bem, fizeste bem; isto já é tarde, e é melhor fazer por dormir. Então, muito boas noites.

– Muito boas noites – respondeu Henrique quasi amuado; e ageitando-se na cama, dizia comsigo: – E esta! Já vejo que nem ler me é permittido aqui. Olhem que vida me espera! É isto o que me devia curar? Que fatalidade!

Dentro em pouco, os dois felpudos cobertores de papa, unicos que conservava dos cinco primitivos, começaram a fazer o seu effeito, insinuando nos membros cançados da jornada um agradavel calor. Convidavam ao somno o som da agua n'um tanque que ficava por debaixo das janellas do quarto e as gottas da chuva, que dos beiraes do telhado caíam compassadas na taboa do peitoril.

A noite socegára. De quando em quando apenas algumas lufadas de vento, já menos impetuosas, faziam bater as vidraças.

Eram como estes estados, que succedem a um choro aberto. Correm ainda algumas lagrimas nas faces, mas já não brotam novas dos olhos: saem ainda do peito os soluços, porém mais espaçados; dentro em pouco será completa a serenidade.

Henrique começou a experimentar uma languidez, um delicioso bem-estar n'aquelle confortavel leito e no meio d'aquelle socego; fecharam-se-lhe enfraquecidos os olhos, e deslisou suave, insensivelmente, no mais profundo, tranquillo e restaurador somno, que, havia muito tempo, tinha dormido.

III

Ao romper da manhã, quando a consciencia principia, pouco a pouco, a acudir aos sentidos, até então tomados pelo torpôr de um somno profundo, Henrique de Souzellas sonhava-se commodamente sentado em uma cadeira de S. Carlos, disposto a assistir ao desempenho de uma opera favorita.

Moviam-se os arcos nas cordas dos violinos, violoncellos e contrabassos; sopravam, a plena bôca, os tocadores dos instrumentos de vento; agitavam descompostamente os braços os ruidosos timbaleiros; dedos amestrados faziam vibrar as cordas da harpa; a batuta do mestre fendia airosamente os ares, e comtudo não chegava aos ouvidos de Henrique, de toda esta riqueza de instrumentação, mais do que uma nota unica, arrastada, continua, plangente, baixando e subindo na escala dos tons, e sem formar uma só phrase musical.

Era de desesperar um dilettante como elle; torcia-se na cadeira, inclinava convenientemente a cabeça, fazia das mãos cornetas acusticas, e sempre o mesmo resultado!

Este violento estado de attenção, este esforço do sensorio, principiou n'elle a obra de despertar; principiou pois pelos ouvidos, mas cêdo se transmittiu a todos os outros orgãos.

Antes de dar a si proprio conta do que era aquelle som, e quasi esquecido ainda do logar em que estava, Henrique abriu os olhos.

A luz do dia penetrava já pelas frestas mal vedadas das janellas e espalhava no aposento uma tenue claridade.

Veio então a Henrique a consciencia do logar em que estava, e uma alegria profunda lhe dilatou o coração.

O leitor se ainda não padeceu de insomnias, de pesadêlos, ou de somnos febris, não avalia por certo o contentamento intimo, que se apossa das desgraçadas victimas d'esses demonios nocturnos, quando por excepção elles as deixam em paz, e lhes respeitam o somno de uma noite completa. Acordar só aos raios da aurora é um dos mais ineffaveis prazeres, a que elles aspiram na vida.

Penetra-lhes então nos membros um insolito vigor; a arca do peito expande-se-lhes mais livre e as sombras do espirito dissipam-se-lhes com aquelle clarão matinal.

Foi o que succedeu a Henrique. Pela primeira vez depois de muitos mezes, dormira de um somno a noite inteira.

Sentia-se com isto tão bom, tão vigoroso, tão contente que teve vontade de cantar.

Mas o som, que o acordára, aquella nota unica, em que se confundiam todas as notas da sonhada orchestra, ainda lhe soava aos ouvidos.

Prestando-lhe a attenção de acordado, conheceu que era o chiar dos carros – o mesmo som, que na vespera o irritára, agora assim a distancia, estava-lhe agradando, como nota extrahida por mão habil das cordas de um violino.

Não resistiu mais tempo ao impulso que n'aquella manhã o incitava ao exercicio, rara disposição no indolente filho da capital, que tinha por habito ouvir o meio dia na cama.

Ergueu-se e abriu as janellas.

Não é licita a comparação entre a mais surprehendente transmutação de uma d'essas apparatosas magicas, que tanto extasiam as multidões embasbacadas nas plateias e camarotes de um theatro, e as que de instante para instante, realisa a natureza. Descerrando o véo de nuvens que encobre o fulgor do sol, elevando, acima do horizonte, esse magestoso lampadario do mundo, ou o brilhante reflectidor que illumina as noites desanuviadas, a natureza opéra, a cada momento, as mais admiraveis e completas metamorphoses.

Durante o somno de Henrique realisára-se um d'esses effeitos magicos.

Abrandára gradualmente a violencia do sul; o vento, mudando, voltou em sentido opposto a grimpa do campanario; dispersaram-se as nuvens; luziram trémulas por momentos as estrellas, empallideceram perante o alvor do dia, e quando o sol assomou por sobre a crista das serras, estendia-se-lhe deante um vasto manto azul, tapetando a estrada, que tinha a percorrer. Só, muito para o occidente, ainda algumas nuvens amontoadas formavam uma como franja, que o astro nascente em breve tingiu de carmim e de ouro.

Foi pois a luz de um dia esplendido e a brisa, cheia de aromas, que vem dos campos nas alvoradas serenas que penetraram no quarto de Henrique, quando elle abriu as janellas.

A inesperada surpreza quasi lhe soltava do peito uma exclamação de prazer!

A aldeia, aquella mesma aldeia, escura e triste que, com o coração apertado, atravessára na vespera, parecia outra.

O sol da manhã baixára sobre ella, dissipára-lhe as sombras, colorira-lhe as verduras, reflectira-se-lhe nas presas, dispersára-se em iris cambiantes na espuma das torrentes e cascatas naturaes, perfumára-a de aromas, animára-a de cantos, transformára-a emfim na mais risonha paizagem, em que os olhos de Henrique, pouco habituados ás esplendidas galas do Minho, tinham nunca repousado.

O inverno despojára parte d'essas galas; embora! Até da propria nudez de algumas arvores resultavam encantos. As folhas crestadas, os ramos despidos, as moitas sem flores infundem tristeza; mas não tem a tristeza poesia tambem? Pode haver completa paizagem onde não haja uns tons escuros de melancolia?

Henrique de Souzellas, debruçado na varanda de pedra do quarto, não se cançava de admirar aquella scena.

Parecia-lhe estar assistindo a um milagre de fadas, que, n'um momento, elevam, nos ermos, jardins e paços, como os de Armida e Alcina.

Pois era esta a mesma aldeia, através da qual elle cavalgára de noite?

Os accidentes do terreno, aquelles accidentes, que tão do fundo da alma amaldiçoára na vespera, produziam, vistos então d'alli, os mais pittorescos effeitos. Abatia-se-lhe aos pés um não muito profundo valle, opulento em vegetação, e que a certa distancia se continuava insensivel e gradualmente com uma amenissima collina.

Além, um bello bosque de carvalhos seculares, que o inverno, privando-os de folhas, tingira quasi da côr da violeta, contrastava com a fronde sempre verde das laranjeiras nos pomares vizinhos, fronde por entre a qual se divisavam abundantes os dourados fructos, poupados pela mão do lavrador. As copas, como umbelladas dos pinheiros mansos, desenhavam nas encostas e eminencias fronteiras as mais suaves ondulações. Dispersos aqui e alli, e entremeiados com a verdura, grupos de casas campestres, alvejantes á luz do sol, moinhos e azenhas, noras toldadas de ramadas conicas, eiras, pontes rusticas, as mesmas talvez que com mau humor trilhára na vespera, tão sinistras então, como graciosas agora; extensas e virentes campinas e lameiros, onde pastavam numerosas manadas de gado. Mais longe a igreja com a sua alameda á entrada e o cemiterio, onde um só mausoléo avultava ainda; uma ou outra casa apalaçada, ennegrecida pelo tempo; algumas ruinas, consolidadas pelas heras, revestidas de musgos, douradas de lichens; finalmente, tudo o que tenta os paizagistas, tudo o que exalça os poetas, tudo quanto suspende os passos ao viajante; e, encobrindo todo o quadro, um tenuissimo sendal de vapores azulados, dando-lhe a apparencia de uma das mimosas composições a pastel da mão de Pillement.

A mudança de aspecto da scena operou não menor mudança nos sentimentos e disposição do enlevado espectador que das varandas de Alvapenha a estava observando.

– É preciso sair! é preciso sair! – disse Henrique comsigo. – Quero vêr isto de perto; quero entranhar-me n'estes bosques, quero trepar por aquelles montes, debruçar-me d'aquellas ribanceiras.

E vestindo-se á pressa, e sem sentir a necessidade de uma escrupulosa toilette, saiu do quarto.

Encontrou nos corredores a tia Dorothéa, que o saudou amavelmente.

– Muito bons dias, menino, então como passaste tu a noite?

– Deliciosamente minha querida tia – respondeu elle, abraçando-a com maior affecto e bom humor do que na vespera.

O que é sentir-se a gente bem!

– Então não estranhaste?

– Estranhei immenso!

– Sim?! – disse a tia, mortificada.

– Dormi a noite de um somno, e acordei bem disposto; o que para mim é a mais estranha das occorrencias.

A tia sorriu satisfeita.

– Pois antes assim. E agora…

– E agora quero sair, quero vêr esta terra, que me está parecendo um paraiso terreal.

– Espera, menino. Não vás sem almoçar.

– Almoçar! Pois que horas são?

– Não é cêdo; são já sete horas.

– Já sete horas!

E Henrique insensivelmente desviou os olhos para a janella, para vêr como era a natureza, a uma hora a que raras vezes a examinava.

– E então acha que se pode almoçar ás sete horas?

– Por que não? Se está já prompto.

– Bom; almocemos. O doutor disse-me que tomasse os habitos da aldeia. Principiemos por este.

Entrando para a sala do jantar, Henrique viu deante de si uma taça de leite espumante, tépido, odorifero, extrahido de pouco tempo.

Foi por elle que principiou o almoço.

Pela primeira vez na sua vida disse elle ter bebido o leite verdadeiro, o leite que não faz mentir a analyse dos chimicos, de que os physiologistas exaltam as qualidades nutritivas, de que os poetas das georgicas cantam as delicias e virtudes; só agora os comprehendeu elle, que bem differente d'aquillo era o aguado e quantas vezes derrancado sôro, a que estava habituado na cidade.

D. Dorothéa, almoçando, e Maria de Jesus, servindo, falaram, segundo o costume, continuadamente.

Henrique, d'esta vez, falou tanto como ellas.

Ouvia-as já com mais attenção e respondia-lhes com mais vontade e paciencia.

Falaram em muitas coisas.

A tia deu parte ao sobrinho de que varias pessoas da vizinhança, sabendo-o chegado, lhe tinham mandado presentes de gallinhas, offerecendo-se, ao mesmo tempo, para lhe mostrarem as raridades da terra; disse mais que as senhoras da quinta do Mosteiro tambem tinham já mandado saber d'elle, Henrique, e lembrou que seria delicado ir visital-as aquella manhã.

Henrique concordou em tudo, quasi sem reparar em quê, e terminando o almoço apressou-se a sair para o campo.

– E se te perdes, menino? – lembrou a tia.

– Se me perder, farei por achar-me.

Riram-se muito as boas mulheres e deixaram-o ir.

Dentro em pouco, Henrique atravessava a quinta, que tambem então lhe parecia graciosa, de uma graça bucolica, a que não estava habituado. O aspecto melancolico da vespera desvanecera-se. Até para ser completa a mudança, estavam encadeados nas casotas o Lobo e o Tyranno, cujas boas graças comtudo procurou conquistar, atirando-lhes biscoutos.

Foi um passeio delicioso o que elle deu. Tudo quanto via lhe era novidade, tudo lhe captivava a attenção e o distrahia dos seus lugubres pensamentos.

Depois de muito andar, de subir collinas, de descer valles e costear ribeiros, foi sair a um pequeno largo, ao fim do qual havia uma casa terrea, caiada de branco, com portas verdes e janellas envidraçadas, sendo os vidros em alguns dos caixilhos substituidos por papel. Á porta d'esta casa estava muita gente parada; mulheres, velhos, moços, creanças, uns sentados, outros deitados, outros a pé e encostados á umbreira, e todos apparentemente aguardando alguma coisa ou alguem do lado de uma das ruas, que vinha terminar no largo, e para a qual se dirigiam todos os olhares.

Henrique approximou-se d'esta casa com alguma curiosidade, que cêdo satisfez, vendo em uma taboleta, suspensa no alto da janella, a seguinte pomposa inscripção: «Repartição do correio», e, como a confirmar o distico, um córte feito na porta para a recepção das cartas.

Lembrando-se da conveniencia de avisar o empregado do correio para lhe serem remettidas a Alvapenha as cartas que lhe viessem de Lisboa, Henrique entrou na repartição.

Consistia esta n'uma loja apenas, mobilada com um banco de pinho e dividida por um mostrador, para dentro do qual se alojava todo o pessoal do serviço, isto é, um homem por junto; e era este o sr. Bento Pertunhas, personagem importante na terra, e a cuja intelligencia e solicitude estavam confiadas mais do que uma funcção. Além de servir, em interinidade permanente, como muitas vezes são as interinidades do nosso paiz, este cargo, dito por elle, de «director do correio», estava de posse s. s.a de uma das cadeiras de latim e de latinidade, com que se procura em Portugal fomentar nos concelhos ruraes o gôsto pelas lettras antigas; era ainda regente e director da philarmonica da terra, armador de igreja em dias festivos, ensaiador de autos e entremezes populares, e, quando Deus queria, auctor de alguns tambem.

Vendo entrar Henrique nos seus dominios, o illustre funccionario tirou cortezmente o seu bonnet de pelle de lontra e ergueu-se da banca para cumprimentar tão honrosa visita. Nos cumprimentos que formulou disse o nome de Henrique.

Admirado por ser já conhecido, Henrique interrogou o latinista e, achando-o muito informado de tudo quanto lhe dizia respeito, convenceu-se de que estava na presença de um esmerilhador de vidas alheias do mais fino quilate e de um falador de assustar.

Com o fim de cortar a divagação, em que o homem entrára a respeito de certa viagem que fizera a Lisboa, perguntou-lhe Henrique se o correio não chegára ainda.

– Saiba v. s.a que ainda não – respondeu o sr. Bento Pertunhas – mas não deve tardar; o homem que d'aqui vae buscar as malas á villa, se bem andasse, já cá podia estar. Esse formigueiro de gente, que v. s.a ahi vê á porta, está á espera d'elle. Hoje então, que chegam as cartas do Brazil, ninguem pára com este povo. Dão-me cabo da paciencia. Isto é um inferno! Eu sirvo este logar interinamente, emquanto o empregado está paralytico; porque eu tenho outro cargo publico; sou professor de latinidade.

– Ah!..

– É verdade, mas a minha vocação era para as artes. Meu pae queria que eu fôsse padre e mandou-me ensinar latim; mas já então a minha paixão era a musica. Eu ainda queria que v. s.a me ouvisse tocar trompa, que é o instrumento que mais tenho estudado… Se v. s.a se demorar ha de fazer-me o favor…

– Com muito gôsto.

– Não poder um homem seguir no mundo a sua vocação!

– Ainda assim não se pode queixar muito. O cultivo das lettras latinas deve-lhe proporcionar gosos; porque emfim para quem possue instinctos de arte, a leitura dos poetas já é um lenitivo contra as agruras da vida.

O mestre Pertunhas fitou Henrique com olhos muito abertos.

– Os poetas? Os poetas latinos! Ora essa! Então parece-lhe que pode achar-se gôsto em lêl-os? Ai, meu caro senhor, eu por mim tenho-lhe uma vontade!.. O latim!.. a mais destemperada e desesperadora lingua que se tem falado no mundo! Se é que se falou – accrescentou em voz baixa.

– Então duvida que se falasse latim? – perguntou Henrique, sorrindo.

– Eu duvido. Não sei como os homens se podessem entender com aquella endiabrada contradança de palavras, com aquella desafinação que faz dar volta ao juizo de uma pessoa. Sabe o senhor o que é uma casa desarranjada, onde ninguem se lembra onde tem as suas coisas quando precisa d'ellas e passa o tempo todo a procural-as? Pois é o que é o latim. Abre a gente um livro e põe-se a traduzir e vae dizendo: «As armas, o homem e eu, canto, de Troia, e primeiro, das praias.» Quem percebe isto! Ora agora peguem n'estas palavras e em outras, que elles punham ás vezes em casa do diabo, e façam uma coisa que se entenda! É quasi uma adivinha. Ora adeus! E depois – continuou elle, enthusiasmado com o riso de Henrique, suppondo-o de approvação – e depois as differentes maneiras de chamar a um objecto? Isso tambem tem graça. Nós cá dizemos por exemplo: «reino e reinos» e está acabado; lá não senhor; diz-se regnum e regna e regni e regno e regnis e até regnorum. Ora venham-me cá elogiar a tal lingua!

Henrique estava achando delicioso o odio entranhado de mestre Bento Pertunhas á latinidade que ensinava com a proficiencia, que o leitor pode imaginar, depois do que ouviu.

– Ai, meu caro senhor – continuou o atribulado magister– eu se me vejo um dia livre d'este amaldiçoado latim, faço uma fogueira, na qual me hei de regalar de vêr arder o Tito Livio e os Virgilios todos tres.

É de advertir que mestre Bento falava sempre no plural, ao referir-se a Virgilio.

Quer-me parecer que para este interprete da litteratura latina tinham de facto existido tres Virgilios, provavelmente irmãos, e cada um auctor de cada um dos tres volumes da edição, que lhe servia de texto. Dizia Virgilio 1.º, 2.º e 3.º, como quem se refere aos monarchas homonymos, que succederam n'um mesmo reino.

– Não me salvo se morro mestre de latim – proseguia elle. – Afunda-me no inferno o trambolho da syntaxe.

Ia continuar, quando toda a gente, que Henrique viu fóra da porta, principiou em desordenada azafama a entrar para a loja, que em breve não comportava mais ninguem.

– Ahi vem o homem, sr. Pertunhas; ahi vem. Graças a Deus, que ahi vem! – diziam todos á uma.

O funccionario principiou a impacientar-se.

– Então! então! Por onde ha de elle entrar, fazem favor de me dizer? Saiam, saiam. Não ouvem? Então não fazem caso das minhas ordens? Dêem logar. Não vêem que estão molestando este senhor?

Cada um dos reprehendidos n'estes termos indignava-se, ao vêr que os outros não obedeciam ás ordens, mas, pela sua parte, não cedia um passo, como se lhe valesse algum especial privilegio.

– Saia você, mulher – dizia um.

– E você por que não sae? Olha agora!

– A todos ha de chegar a vez. Descance. Se tiver carta lh'a darão. Lá por estar aqui não é que…

– Pois então saia tambem. Ora essa!

– Ó santinha, não empurre.

– Ó filho, quem é que lhe faz mal?

– Por onde é que se quer metter, homem de Deus?

– Eu não sou menos que os outros.

– Que quereis vós d'aqui, canalhada?

– Não bata, que ninguem lhe tocou, seu velhote.

– Espera que eu te falo.

Estas e analogas vozes abafavam n'um rumor tumultuoso as agudas declamações do «director do correio», o qual obrigou Henrique a passar para dentro da teia, para se salvar das ondas populares.

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