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Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III
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Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III

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Luís Camões

Obras Completas de Luis de Camões, Tomo III

RIMAS

REDONDILHAS

Sôbolos rios que vãoPor Babylonia, me achei,Onde sentado choreiAs lembranças de Sião,E quanto nella passei.Alli o rio correnteDe meus olhos foi manado;E tudo bem comparado,Babylonia ao mal presente,Sião ao tempo passado.Alli lembranças contentesN'alma se representárão;E minhas cousas ausentesSe fizerão tão presentes,Como se nunca passárão.Alli, despois d'acordado,Co'o rosto banhado em ágoa,Deste sonho imaginado,Vi que todo o bem passadoNão he gôsto, mas he mágoa.E vi que todos os danosSe causavão das mudanças,E as mudanças dos anos;Onde vi quantos enganosFaz o tempo ás esperanças.Alli vi o maior bemQuão pouco espaço que dura;O mal quão depressa vem;E quão triste estado temQuem se fia da ventura.Vi aquillo que mais valQu'então s'entende melhor,Quando mais perdido for:Vi ao bem succeder mal,E ao mal muito peor.E vi com muito trabalhoComprar arrependimento:Vi nenhum contentamento;E vejo-me a mi, qu'espalhoTristes palavras ao vento.Bem são rios estas ágoasCom que banho este papel:Bem parece ser cruelVariedade de mágoas,E confusão de Babel.Como homem, que por exemploDos trances em que se achou,Despois que a guerra deixou,Pelas paredes do temploSuas armas pendurou:Assi, despois qu'assenteiQue tudo o tempo gastava,Da tristeza que tomei,Nos salgueiros pendureiOs orgãos com que cantava.Aquelle instrumento ledoDeixei da vida passada,Dizendo: Musica amada,Deixo-vos neste arvoredoÁ memoria consagrada.Frauta minha, que tangendoOs montes fazieis virPar'onde estaveis, correndo;E as ágoas, que hião descendo,Tornavão logo a subir;Jamais vos não ouvirãoOs tigres, que s'amansavão;E as ovelhas, que pastavão,Das hervas se fartarão,Que por vos ouvir deixavão.Ja não fareis docementeEm rosas tornar abrolhosNa ribeira florecente;Nem poreis freio á corrente,E mais se for dos meus olhos.Não movereis a espessura,Nem podereis ja trazerAtraz vós a fonte pura;Pois não pudestes moverDesconcertos da ventura.Ficareis offerecidaÁ Fama, que sempre vela,Frauta de mi tão querida;Porque mudando-se a vida,Se mudão os gostos della.Acha a tenra mocidadePrazeres accommodados;E logo a maior idadeJa sente por pouquidadeAquelles gostos passados.Hum gôsto, que hoje s'alcança,Á manhãa ja o não vejo:Assi nos traz a mudançaD'esperança em esperança,E de desejo em desejo.Mas em vida tão escassaQu'esperança será forte?Fraqueza da humana sorte,Que quanto da vida passaEstá recitando a morte!Mas deixar nesta espessuraO canto da mocidade:Não cuide a gente futuraQue será obra da idadeO que he fôrça da ventura.Qu'idade, tempo, e espantoDe ver quão ligeiro passe,Nunca em mi puderão tanto,Que, postoque deixo o canto,A causa delle deixasse.Mas em tristezas e nojos,Em gôsto e contentamento;Por sol, por neve, por vento,Tendré presente á los ojosPor quien muero tan contento.Orgãos e frauta deixava,Despôjo meu tão querido,No salgueiro que alli'stava,Que para tropheo ficavaDe quem me tinha vencido.Mas lembranças da affeiçãoQue alli captivo me tinha,Me perguntárão então,Qu'era da musica minha,Que eu cantava em Sião?Que foi daquelle cantar,Das gentes tão celebrado?Porque o deixava de usar,Pois sempre ajuda a passarQualquer trabalho passado?Canta o caminhante ledoNo caminho trabalhosoPor entre o espêsso arvoredo;E de noite o temerosoCantando refreia o medo.Canta o preso docemente,Os duros grilhões tocando;Canta o segador contente;E o trabalhador, cantando,O trabalho menos sente.Eu qu'estas cousas sentiN'alma de mágoas tão cheia,Como dirá, respondi,Quem alheio está de siDoce canto em terra alheia?Como poderá cantarQuem em chôro banha o peito?Porque, se quem trabalharCanta por menos cansar,Eu só descansos engeito.Que não parece razão,Nem sería cousa idonia,Por abrandar a paixãoQue cantasse em BabyloniaAs cantigas de Sião.Que quando a muita gravezaDe saudade quebranteEsta vital fortaleza,Antes morra de tristeza,Que por abrandá-la cante.Que se o fino pensamentoSó na tristeza consiste,Não tenho medo ao tormento:Que morrer de puro triste,Que maior contentamento?Nem na frauta cantareiO que passo, e passei ja,Nem menos o escreverei;Porque a penna cansará,E eu não descansarei.Que se vida tão pequenaS'accrescenta em terra estranha;E se Amor assi o ordena,Razão he que canse a pennaD'escrever pena tamanha.Porém, se para assentarO que sente o coração,A penna ja me cansar,Não canse para voarA memoria em Sião.Terra bem-aventurada,Se por algum movimentoD'alma me fores tirada,Minha penna seja dadaA perpétuo esquecimento.A pena deste destêrro,Qu'eu mais desejo esculpidaEm pedra, ou em duro ferro,Essa nunca seja ouvida,Em castigo de meu êrro.E se eu cantar quizerEm Babylonia sujeito,Hierusalem, sem te ver,A voz, quando a mover,Se me congele no peito;A minha lingua se apegueÁs fauces, pois te perdi,S'em quanto viver assiHouver tempo, em que te negue,Ou que m'esqueça de ti.Mas ó tu, terra de glória.S'eu nunca vi tua essencia,Como me lembras na ausencia?Não me lembras na memoria,Senão na reminiscencia:Que a alma he taboa rasa,Que com a escrita doutrinaCeleste tanto imagina,Que vôa da propria casa,E sobe á patria divina.Não he logo a saudadeDas terras onde nasceoA carne, mas he do Ceo,Daquella santa Cidade,Donde est'alma descendeo.E aquella humana figura,Que cá me póde alterar,Não he quem se ha de buscar;He raio da formosura,Que só se deve d'amar.Que os olhos, e a luz que ateiaO fogo que cá sujeita,Não do sol, nem da candeia,He sombra daquella ideia,Qu'em Deos está mais perfeita.E os que cá me captivárão,São poderosos affeitosQu'os corações tẽe sujeitos;Sophistas, que m'ensinárãoMaos caminhos por direitos.Destes o mando tyranoM'obriga com desatinoA cantar ao som do danoCantares d'amor profano,Por versos d'amor divino.Mas eu, lustrado co'o santoRaio, na terra de dor,De confusões e d'espantoComo hei de cantar o canto,Que só se deve ao Senhor?Tanto póde o beneficioDa graça que dá saude,Que ordena que a vida mude:E o qu'eu tomei por vício,Me faz grao para a virtude;E faz qu'este naturalAmor, que tanto se préza,Suba da sombra ao real,Da particular bellezaPara a belleza geral.Fique logo penduradaA frauta com que tangi,Ó Hierusalem sagrada,E tome a lyra douradaPara só cantar de ti;Não captivo e ferrolhadoNa Babylonia infernal,Mas dos vicios desatado,E cá desta a ti levado,Patria minha natural.E s'eu mais der a cervizA mundanos accidentes,Duros, tyrannos e urgentes,Risque-se quanto ja fizDo grão livro dos viventes.E, tomando ja na mãoA lyra santa e capazD'outra mais alta invenção,Calle-se esta confusão,Cante-se a visão de paz.Ouça-me o pastor e o rei,Retumbe este accento santo,Mova-se no mundo espanto;Que do que ja mal canteiA palinodia ja canto.A vós só me quero ir,Senhor, e grão CapitãoDa alta tôrre de Sião,Á qual não posso subir,Se me vós não dais a mão.No grão dia singular,Que na lyra em douto somHierusalem celebrar,Lembrae-vos de castigarOs ruins filhos de Edom.Aquelles que tintos vãoNo pobre sangue innocente,Soberbos co'o poder vão,Arrazá-los igualmente:Conheção que humanos são.E aquelle poder tão duroDos affectos com que venho,Qu'encendem alma e engenho;Que ja m'entrárão o muroDo livre arbitrio que tenho;Estes, que tão furiososGritando vem a escalar-me,Maos espiritos damnosos,Que querem como forçososDo alicerce derribar-me;Derribae-os, fiquem sós,De fôrças fracos, imbelles;Porque não podemos nós,Nem com elles ir a vós,Nem sem vós tirar-nos delles.Não basta minha fraquezaPara me dar defensão,Se vós, santo Capitão,Nesta minha FortalezaNão puzerdes guarnição.E tu, ó carne, qu'encantas,Filha de Babel tão feia,Toda de miseria cheia,Que mil vezes te levantasContra quem te senhoreia;Beato só póde serQuem co'a ajuda celesteContra ti prevalecer,E te vier a fazerO mal que lhe tu fizeste:Quem com disciplina cruaSe fere mais que huma vez;Cuja alma, de vicios nua,Faz nodas na carne sua,Que ja a carne n'alma fez.E beato quem tomarSeus pensamentos recentes,E em nascendo os affogar,Por não virem a pararEm vicios graves e urgentes:Quem com elles logo derNa pedra do furor santo,E batendo os desfizerNa Pedra, que veio a serEmfim cabeça do canto:Quem logo, quando imaginaNos vicios da carne má,Os pensamentos declinaÁquella Carne divina,Que na Cruz esteve ja.Quem do vil contentamentoCá deste mundo visibil,Quanto ao homem for possibil,Passar logo entendimentoPara o mundo intelligibil;Alli achará alegriaEm tudo perfeita, e cheiaDe tão suave harmonia,Que nem por pouca recreia,Nem por sobeja enfastia.Alli verá tão profundoMysterio na summa Alteza,Que, vencida a natureza,Os mores faustos do mundoJulgue por maior baixeza.Ó tu, divino aposento,Minha patria singular,Se só com te imaginar,Tanto sobe o entendimento,Que fara se em ti se achar?Ditoso quem se partirPara ti, terra excellente,Tão justo e tão penitente,Que despois de a ti subir,Lá descanse eternamente!– oOo —CARTA A HUMA DAMAQuerendo escrever hum diaO mal, que tanto estimei;Cuidando no que poria,Vi Amor que me dizia:Escreve, qu'eu notarei.E como para se lerNão era historia pequenaA que de mi quiz fazer,Das azas tirou a pennaCom que me fez escrever.E, logo como a tirou,Me disse: Aviva os espritos;Que pois em teu favor sou,Esta penna, que te dou,Fara voar teus escritos.E dando-me a padecerTudo o que quiz que puzesse,Pude emfim delle dizer,Que me deo com qu'escrevesseO que me deo a escrever.Eu qu'este engano entendi,Disse-lhe: Qu'escreverei?Respondeo, dizendo assi:Altos effeitos de mi.E daquella a quem te dei.E ja que te manifestoTodas minhas estranhezas,Escreve, pois que te prézas,Milagres d'hum claro gesto,E de quem o vio, tristezas.Ah Senhora, em quem se apuraA fé de meu pensamento!Escutae e estae a tento,Que com vossa formosuraIguala Amor meu tormento.E, postoque tão remotaEstejais de m'escutarPor me não remediar,Ouvi, que pois Amor nota,Milagres se hão de notar.Escrevem varios Authores,Que junto da clara fonteDo Ganges, os moradoresVivem do cheiro das floresQue nascem naquelle monte.Se os sentidos podem darMantimento ao viver,Não he logo d'espantar,S'estes vivem de cheirar,Que viva eu só de vos ver.Huma árvore se conhece,Que na geral alegriaElla tanto s'entristece,Que, como he noite, florece,E perde as flores de dia.Eu, qu'em ver-vos sinto o preçoQu'em vossa vista consiste,Em a vendo m'entristeço,Porque sei que não mereçoA glória de ver-me triste.Hum Rei de grande poderCom veneno foi criado,Porque, sendo costumado,Não lhe pudesse empecer,Se despois lhe fosse dado.Eu, que criei de pequenaA vista a quanto padece,Desta sorte m'acontece,Que não me faz mal a pena,Senão quando me fallece.Quem da doença RealDe longe enfêrmo se sente,Por segredo naturalFica são vendo somenteHum volatil animal.Do mal, que Amor em mi cria,Quando aquella Phenix vejo,São de todo ficaria;Mas fica-me hydropesia,Que quanto mais, mais desejo.Da vibora he verdadeiro,Se a consorte vai buscar,Qu'em se querendo juntar,Deixa a peçonha primeiro,Porque lh'impede o gerar.Assi quando m'apresentoÁ vossa vista inhumana,A peçonha do tormentoDeixo á parte, porque danaTamanho contentamento.Querendo Amor sustentar-se,Fez huma vontade esquivaD'huma estatua namorar-se:Despois, por manifestar-se,Converteo-a em mulher viva.De quem m'irei eu queixando,Ou quem direi que m'enganaSe vou seguindo e buscandoHuma imagem, que d'humanaEm pedra se vai tornando?D'huma fonte se sabía,Da qual certo se provavaQue quem sôbre ella jurava,Se falsidade dizia,Dos olhos logo cegava.Vós, que minha liberdade,Senhora, tyrannizais,Injustamente mandais,Quando vos fallo verdade,Que vos não possa ver mais.Da palma s'escreve e cantaSer tão dura e tão forçosa,Que pêzo não a quebranta,Mas antes, de presunçosa,Com elle mais se levanta.Co'o pêzo do mal que dais,A constancia qu'em mi vejo,Não somente ma dobrais,Mas dobra-se meu desejo,Com qu'então vos quero mais.Se alguem os olhos quizerÁs andorinhas quebrar,Logo a mãe, sem se deter,Huma herva lhe vai buscarQue lhes faz outros nascer.Eu que os olhos tenho attentoNos vossos, qu'estrellas são,Cegão-se os do entendimento,Mas nascem-me os da razãoDe folgar com meu tormento.Lá para onde o sol sahe,Descobrimos, navegando,Hum novo rio admirando,Que o lenho que nelle cahe,Em pedra se vai tornando.Não s'espantem disto as gentes;Mais razão será qu'espanteHum coração tão possante,Que com lagrimas ardentesSe converte em diamante.Póde hum mudo nadadorNa linha e cana influirTão venenoso vigor,Que faz mais não se bulirO braço do pescador.Se começão de beberDeste veneno excellenteMeus olhos, sem se deter,Não se sabem mais moverA nada que se apresente.Isto são claros sinaisDo muito qu'em mi podeis:Nem podeis desejar mais;Que se ver-vos desejais,Em mi claro vos vereis.E quereis ver a que fimEm mi tanto bem se pôs?Porque quiz Amor assim,Que por vos verdes a vós,Tambem me visseis a mim.Dos males que m'ordenais,Qu'inda tenho por pequenos,Sabei, se mos escutais,Que ja não sei dizer mais,Nem vós podeis saber menos.Mas ja que a tanto tormentoNão se acha quem resista,Eu, Senhora, me contentoDe terdes meu soffrimentoPor alvo de vossa vista.Quantos contrarios consenteAmor, por mais padecer!Que aquella vista excellente,Que me faz viver contente,Me faça tão triste ser!Mas dou este entendimentoAo mal, que tanto m'offende,Como na vela s'entende,Que se se apaga co'o vento,Co'o mesmo vento se accende.Exprimentou-se algum'horaD'ave, que chamão Camão,Que se da casa, onde mora,Vê adúltera senhora,Morre de pura paixão.A dor he tão sem medida,Que remedio lhe não val.Mas oh ditoso animal,Que póde perder a vida,Quando vê tamanho mal!Nos gôstos de vos quererEstava agora enlevado,Se não fôra salteadoDas lembranças de temerSer por outrem desamado.Estas suspeitas tão frias,Com que o pensamento sonha,São assi como as harpias,Que as mais doces iguariasVão converter em peçonha.Faz-me este mal infinitoNão poder ja mais dizer,Por não vir a corromperOs gostos que tenho escrito,Co'os males qu'hei d'escrever.Não quero que s'apregôeMal tanto para encobrir,Porque em quanto aqui s'ouvirNenhuma outra cousa sôe,Que a glória de vos servir.– oOo —Á MESMADama d'estranho primor,Se vos forPezada minha firmeza,Olhae não me deis tristeza,Porque a converto em amor.E se cuidaisDe me matar, quando usaisD'esquivança,Irei tomar por vingançaAmar-vos cada vez mais.Porém vosso pensamento,Como isento,Seguirá sua tenção,Crendo qu'em tanta affeiçãoNão haja accrescentamento.Não creaisQue desta arte vos façaisInvencibil;Que Amor sôbre o impossibilAmostra que póde mais.Mas ja da tenção que sigo,Me desdigo;Que se ha tanto poder nelle,Tambem vós podeis mais qu'elleNeste mal que usais comigo.Mas se forO vosso poder maiorEntre nós,Quem poderá mais que vós,Se vós podeis mais que Amor?Despois que, Dama, vos vi,Entendi,Que perdêra Amor seu preço;Pois o favor que lh'eu peço,Vos pede elle para si.Nem duvidoQue não póde, de sentido,Resistir;Pois em vez de vos ferir,Ficou de vos ver ferido.Mas pois vossa vista he talEm meu mal,Que posso de vós querer?Que mal poderei valer,Onde o mesmo Amor não val.Se attentar,Nenhum bem posso esperar:E oxaláQue vos alembrasse ja,Sequer para me matar.Mas nem com isto creaisQue façaisMeus serviços mais pequenos;Porqu'eu, quando espero menos,Sabei qu'então quero mais.Nada espero;Mas de mi crede este fero,Qu'em ser vosso,Vos quero tudo o que posso,E não posso quanto quero.Só por esta phantasiaMereciaDe meus males algum fruito;E não era certo muitoPara o muito que queria.De maneira,Que não he, na derradeira,Grande espanto,Que quem, Dama, vos quer tanto,Que outro tanto de vós queira.– oOo —A HUMAS SUSPEITASSuspeitas, que me quereis?Qu'eu vos quero dar lugarQue de certas me mateis,Se a causa, de que nasceis,Vós quizesseis confessar.Que de não lhe achar desculpa,A grande mágoa passadaMe tẽe a alma tão cansada,Que se me confessa a culpa,Te-la-hei por desculpada.Ora vêde que perigosTẽe cercado o coração,Que no meio da oppressãoA seus proprios inimigosVai pedir a defensão!Que, suspeitas, eu bem sei,Como se claro vos visse,Que he certo o que ja cuidei;Que nunca mal suspeitei,Que certo me não sahisse.Mas queria esta certezaDaquella que me atormenta;Porque em tamanha estreitezaVer que disso se contenta,He descanso da tristeza.Porque se esta só verdadeMe confessa limpa e nuaDe cautela e falsidade,Não póde a minha vontadeDesconforme ser da sua.Por segredo namoradoHe certo estar conhecidoQue o mal de ser engeitadoMais atormenta sabidoMil vezes, que suspeitado.Mas eu só, em quem se ordenaNovo modo de querella,De medo da dor pequena,Venho a achar na maior penaO refrigerio para ella.Ja nas iras m'inflammei,Nas vinganças, nos furores,Que ja doudo imaginei;E ja mais doudo jureiDe arrancar d'alma os amores.Ja determinei mudar-mePara outra parte com ira;Despois vim a concertar-meQue era bom certificar-meNo que mostrava a mentira.Mas despois ja de cansadasAs furias do imaginar,Vinha emfim a rebentarEm lagrimas magoadas,E bem para magoar.E deixando-se vencerOs meus fingidos enganosDe tão claros desenganos,Não posso menos fazer,Que contentar-me co'os danos.E pedir que me tirassemEste mal de suspeitarQue me vejo atormentar,Indaque me confessassemQuanto me póde matar.Olhae bem se me trazeis,Senhora, pôsto no fim;Pois neste estado a que vim,Para que vós confesseis,Se dão os tratos a mim.Mas para que tudo possaAmor, que tudo encaminha,Tal justiça lhe convinha;Porque da culpa, qu'he vossa,Venha a ser a morte minha.Justiça tão mal olhadaOlhae com que côr se doura,Que quero, ao fim da jornada,Que vós sejais confessada,Para qu'eu seja o que moura!Pois confessae-vos jagora,Indaque tenho temorQue nem nesta última horaMe ha de perdoar AmorVossos peccados, Senhora.E assi vou desesperado,Porque estes são os costumesD'amor que he mal empregado;Do qual vou ja condemnadoAo inferno de ciumes.– oOo —LABYRINTHO, QUEIXANDO-SE DO MUNDO.1Corre sem vela e sem lemeO tempo desordenado,D'hum grande vento levado:O que perigo não teme,He de pouco exprimentado.As redeas trazem na mãoOs que redeas não tiverão:Vendo quanto mal fizerãoA cobiça e ambição,Disfarçados se acolhêrão.A nao, que se vai perder,Destrue mil esperanças:Vejo o mao que vem a ter;Vejo perigos correrQuem não cuida que ha mudanças.Os que nunca em sella andárão,Na sella postos se vem:De fazer mal não deixárão;De demonio hábito temOs que o justo profanárão.Que poderá vir a serO mal nunca refreado?Anda, por certo, enganadoAquelle que quer valer,Levando o caminho errado.He para os bons confusão,Ver que os maos prevalecêrão;Que, pôsto se detiverãoCom esta simulação,Sempre castigos tiverão:Não porque governe o lemeEm mar envolto e turbado,Que tẽe seu rumo mudado,Se perece grita e gemeEm tempo desordenado.Terem justo galardão,E dor dos que merecêrão,Sempre castigos tiverãoSem nenhuma redempção,Postoque se detiverão.Na tormenta, se vier,Desespere na bonança,Quem manhas não sabe ter:Sem que lhe valha gemer,Verá falsar a balança.Os que nunca trabalhárão,Tendo o que lhe não convem,Se ao innocente enganárão,Perderão o eterno bem,Se do mal não s'apartárão.– oOo —CONVITE QUE FEZ NA INDIA A CERTOS FIDALGOSA primeira iguaria foi posta a Vasco de Ataide, e dizia:Se não quereis padecerHuma, ou duas horas tristes,Sabeis que haveis de fazer?Volveros por dó venistes,Que aqui não ha que comer.E, postoque aqui leaisTrovinha que vos enleia,Corrido não estejais;Porque por mais que corrais,Não heis de alcançar a ceia.A segunda a D. Francisco de AlmeidaHeliogabalo zombavaDas pessoas convidadas;E de sorte as enganava,Que as iguarias que dava,Vinhão nos pratos pintadas.Não temais tal travessura,Pois ja não póde ser nova;Porque a cêa está seguraDe vos não vir em pintura;Mas ha de vir toda em trova.A terceira a Heitor da SilveiraCêa não a papareis:Com tudo, porque não minta,Para beber achareis,Não Caparica, mas tinta,E mil cousas que papeis.E vós torceis o focinhoCom esta amphibologia?Pois sabei que a PoesiaVos dá aqui tinta por vinho,E papéis por iguaria.A quarta a João Lopes Leitão, a quem o Author fez huns versos, que vão adiante, sôbre huma peça de cacha, que deo a huma DamaPorque os que vos convidárãoVosso estomago não danem,Por justa causa ordenárão,Se trovas vos enganárão,Que trovas vos desenganem.Vós tereis isto por tacha,Converter tudo em trovar;Pois se me virdes zombar,Não cuideis, Senhor, que he cacha,Que aqui não ha que cachar.Responde João LopesPezar ora não de são,Eu juro pelo Ceo bento,Se de comer não me dão,Qu'eu não sou camaleão,Que m'hei de manter do vento.Responde o AuthorSenhor, não vos agasteis,Porque Deos vos proverá;E se mais saber quereis,Nas costas deste lereisAs iguarias que ha.Virado o papel, dizia assi:Tendes nem migalha assada;Cousa nenhuma de môlho;E nada feito em empada;E vento de tigelada;Picar no dente em remôlho:De fumo tendes taçalhos;Ave da pena que senteQuem da fome anda doente;Bocejar de vinho e d'alhos;Manjar em branco excellente.A derradeira a Francisco de MelloD'hum homem, que teve o scetroDa vêa maravilhosa,Não foi cousa duvidosa,Que se lhe tornava em metroO qu'hia a dizer em prosa.De mi vos quero affirmarQue faça cousas mais novas,De quanto podeis cuidar;E esta cêa, que he manjar,Vos faça na boca em trovas.– oOo —NA INDIA AO VISO-REI, COM O MOTE ADIANTEConde, cujo illustre peitoMerece nome de Rei,Do qual muito certo seiQue lhe fica sendo estreitoO cargo de Viso-Rei;Servirdes-vos d'occupar-meTanto contra meu Planeta,Não foi senão azas dar-me,Com as quaes vou a queimar-me,Como o faz a borboleta.E s'eu a penna tomar,Que tão mal cortada tenho,Será para celebrarVosso valor singularDino de mais alto engenho.Que se o meu vos celebrasse,Necessario me seríaQue os olhos d'aguia tomasse,Só para que não cegasseNo sol de vossa valia.Vossos feitos sublimadosNas armas, dignos de gloria,São no mundo tão soados,Qu'em vós de vossos passadosSe resuscita a memoria.Pois aquelle ânimo estranho,Prompto para todo effeito,Espanta todo o conceito:Como coração tamanhoVos póde caber no peito?A clemencia, que asserenaCoração tão singular,S'eu nisso puzesse a penna,Sería encerrar o marEm cova muito pequena.Bem basta, Senhor, que agoraVos sirvais de me occupar;Que assi fareis apararA penna, com que algum'horaVos vereis ao ceo voar.Assi vos irei louvando,Vós a mi do chão erguendo,Ambos o mundo espantando;Vós com a espada cortando,Eu com a penna escrevendo.Mote que lhe mandou o Viso-ReiMuito sou meu inimigo,Pois que não tiro de miCuidados, com que nasci,Que põe a vida em perigo.Oxalá que fôra assi!VoltaViver eu, sendo mortal,De cuidados rodeado,Parece meu natural;Que a peçonha não faz malA quem foi nella criado.Tanto sou meu inimigo,Que por não tirar de miCuidados, com que nasci,Porei a vida em perigo.Oxalá que fôra assi!Tanto vim a accrescentarCuidados, que nunca amansãoEm quanto a vida durar,Que canso ja de cuidarComo cuidados não cansão.S'estes cuidados, que digo,Dessem fim a mi e a si,Farião pazes comigo;Que pôr a vida em perigo,O bom fôra para mi.– oOo —A HUMA DAMA, QUE LHE MANDOU PEDIR ALGUMAS OBRAS SUASSenhora, s'eu alcançasseNo tempo que ler quereis,Que a dita dos meus papéisPola minha se trocasse;E por verTudo o que posso escreverEm mais breve relação,Indo eu onde elles vão,Por mi só quizesseis ler;Despois de ver hum cuidadoTão contente de seu mal,Verieis o naturalDo que aqui vêdes pintado;Que o perfeitoAmor, de que sou sogeito,Vereis aspero e cruel,Aqui com tinta e papel,Em mi com sangue no peito.Que hum continuo imaginarNaquillo que Amor ordena,He pena, que emfim por pennaSe não póde declarar;Que se eu levoDentro n'alma quanto devoDe trasladar em papéis,Vêde que melhor lereis,Se a mi, se aquillo qu'escrevo?– oOo —A HUMA SENHORA, A QUEM DERÃO HUM PEDAÇO DE SITIM AMARELLOSe derivais da verdadeEsta palavra Sitim,Achareis sem falsidade,Que apos o si tẽe o tim,Que tine em toda a Cidade.Bem vejo que m'entendeis;Mas porque não falle em vão,Sabei que a esta NaçãoTanto que o si concedeis,O tim logo está na mão.E quem da fama s'arreda,Que tudo vai descobrir,Deve sempre de fugirDe sitins, porque da sedaSeu natural he rugir.Mas panno fino e delgado,Qual a raxa e outros assi,Dura, aquenta, e he callado,Amoroso, e dá de siMais que sitim, nem brocado.Mas estes, que sedas sãoCom quem s'enganão mil Damas,Mais vos tomão, do que dão;Promettem, mas não darão,Senão nodoas para as famas.E se não me quereis crer,Ou tomais outro caminho,Por exemplo o podeis ver,Quando lá virdes arderA casa d'algum vizinho.Oh feminina simpreza,Donde estão culpas a pares,Que por hum Dom de nobreza,Deixão dões da natureza,Mais altos e singulares!Hum Dom, que anda enxertadoNo nome, e nas obras não.Fallo como exprimentado;Que sitim desta feiçãoEu tenho muito cortado.Dizem-me qu'era amarello;E quem assi o quiz dar,Só para me Deos vingar,Se vem á mão amarê-lo,O qu'eu não posso cuidar.Porque quem sabe viverPor estas artes manhosas,(Isto bem póde não ser)Dá a meninas formosas,Somente polas fazer.Quem vos isto diz, Senhora,Servio nas vossas armadasMuito, mas anda ja fóra;E póde ser qu'inda agoraTraz abertas as fréchadas.E, postoque desfavoresO tirão de servidor,Quer-vos ventura melhor;Que dos antigos amoresInda lhe fica este amor.– oOo —A HUMA SENHORA REZANDO POR HUMAS CONTASPeço-vos que me digaisAs orações que rezastes,Se são polos que matastes,Se por vós que assi matais?Se são por vós, são perdidas;Que qual será a oração,Que seja satisfação,Senhora, de tantas vidas?Que se vêdes quantos vemA só vida vos pedir,Como vos ha Deos de ouvir,Se vós não ouvis ninguem?Não podeis ser perdoadaCom mãos a matar tão prontas,Que se n'huma trazeis contas,Na outra trazeis espada.Se dizeis que encommendandoOs que matastes andais;Se rezais por quem matais,Para que matais rezando?Que se na fôrça do orarLevantais as mãos aos Ceos,Não as ergueis para Deos,Erguei-las para matar.E quando os olhos cerrais,Toda enlevada na fé,Cerrão-se os de quem vos vê,Para nunca verem mais.Pois se assi forem tratadosOs que vos vem quando orais,Essas horas que rezais,São as horas dos finados.Pois logo, se sois servidaQue tantos mortos não sejão,Não rezeis onde vos vejão,Ou vêde para dar vida.Ou se quereis escusarEstes males que causastes,Resuscitae quem matastes,Não tereis por quem rezar.– oOo —A HUMA DAMA QUE LHE DEO HUMA PENNASe n'alma e no pensamentoPor vosso me manifesto,Não me peza do que sento;Que se não soffrer tormento,Faço offensa a vosso gesto.E, pois quanto Amor ordena,E quanto est'alma deseja,Tudo á morte me condena,Não quero senão que sejaTudo pena, pena, pena.– oOo —A HUMA DAMA QUE LHE CHAMOU CARA SEM OLHOSSem olhos vi o mal claro,Que dos olhos se seguio:Pois cara sem olhos vioOlhos, que lhe custão caro.D'olhos não faço menção,Pois quereis que olhos não sejão;Vendo-vos, olhos sobejão,Não vos vendo, olhos não são.– oOo —DISPARATES NA INDIAEste mundo es el caminoAdó hay ducientos váos,Ou por onde bons e maos,Todos somos del merino.Mas os maos são de teor,Que desque mudão a côr,Chamão logo a ElRei compadre;E emfim dejadlos, mi madre,Que sempre tẽe hum saborDe quem torto nasce, tarde s'endireita.Deixae a hum que se abone:Diz logo de muito sengo,Villas y castillos tengo,Todos á mi mandar sone.Então eu, qu'estou de môlho,Com a lagrima no ôlho,Polo virar do envés,Digo-lhe: tu ex illis es,E por isso não te ólho;Pois honra e proveito não cabem n'hum saco.Vereis huns, que no seu seioCuidão que trazem París,E querem com dous ceitís,Fender anca pelo meio.Vereis mancebindo de arte,Com espada em talabarte:Não ha mais Italiano.A este direis: Meu mano,Vós sois galante que farte;Mas pan y vino anda el camino, que no mozo garrido.Outros em cada theatro,Por officio lhe ouvirêsQue se matarán con tres,Y lo mismo haran con cuatro.Prezão-se de dar respostas,Com palavras bem compostas;Mas se lhe meteis a mão,Na paz mostrão coração,Na guerra mostrão as costas;Porque aqui torce a porca o rabo.Outros vejo por ahi,A que se acha mal o fundo,Que andão emendando o mundo,E não se emendão a si.Estes respondem a quemDelles não entende bemEl dolor que está secreto;Mas porém quem for discreto,Responder-lhe-ha muito bem:Assi entrou o mundo, assi ha de sahir.Achareis rafeiro velho,Que se quer vender por galgo:Diz que o dinheiro he fidalgo,Que o sangue todo he vermelho.Se elle mais alto o dissera,Este pelote puzera:Que o seu eco lhe responda;Que su padre era de Ronda,Y su madre de Antequera,E quer cobrir o ceo co'huma joeira.Fraldas largas, grave aspeito,Para Senador Romano.Oh que grandissimo engano!Que Momo lhe abrisse o peito!Consciencia, que sobeja,Siso, com que o mundo reja,Mansidão outro que si;Mas que lobo está em ti,Metido em pelle de oveja!E sabem-no poucos.Guardae-vos de huns meus Senhores,Que ainda comprão e vendem;Huns, qu'he certo, que descendemDa geração de pastores:Mostrão-se-vos bons amigos;Mas se vos vem em perigos,Escarrão-vos nas paredes;Que de fóra dormiredes,Irmão, que he tempo de figos;Porque de rabo de porco nunca bom virote.Que direis d'huns, que as entranhasLh'estão ardendo em cobiça,E se tẽe mando, a justiçaFazem de teas de aranhas?Com suas hypocrisias,Que são de vossas espias:Para os pequenos huns Neros,Para os grandes tudo feros.Pois tu, parvo, não sabías,Que lá vão leis, onde querem cruzados?Mas tornando a huns enfadonhos,Cujas cousas são notorias;Huns, que contão mil históriasMais desmanchadas que sonhos;Huns mais parvos que zamboas,Qu'estudão palavras boas,A que ignorancia os atiça:Estes paguem por justiça,Que tẽe morto mil pessoas,Por vida de quanto quero.Adonde tienen las mentesHuns secretos trovadores,Que fazem cartas d'amores,De que ficão mui contentes?Não querem sahir á praça;Trazem trova por negaça;E se lha gabais, qu'he boa,Diz qu'he de certa pessoa.Ora que quereis que faça,Senão ir-me por esse mundo?Ó tu, como me atarracas,Escudeiro de Solia,Com bocaes de fidalguia,Trazido quasi com vacas;Importuno a importunar,Morto por desenterrarParentes, que cheirão ja!Voto a tal, que me faraHum destes nunca fallarMais com viva alma.Huns, que fallão muito, vi,De que quizera fugir;Huns que, emfim, sem se sentir,Andão fallando entre si;Porfiosos sem razão;E desque tomão a mão,Fallão sem necessidade;E se algum'hora he verdade,Deve ser na confissão;Porque quem não mente… Ja m'entendeis.Oh vós, quem quer que me lerdes,Qu'haveis de ser avisado,Que dizeis ao namoradoQue caça vento com redes?Jura por vida da Dama;Falla comsigo na cama;Passêa de noite e escarra;Por falsete na guitarraPõe sempre: Viva que ama,Porque calça a seu proposito.Mas deixemos, se quizerdes,Por hum pouco as travessuras,Porqu'entre quatro madurasLeveis tambem cinco verdes.Deitemos-nos mais ao mar;E se algum se arrecear,Passe tres ou quatro trovas.E vós tomais côres novas?Mas não he para espantar;Que quem porcos ha menos,Em cada mouta lhe roncão.Ó vós, que sois SecretariosDas consciencias Reais,E que entre os homens estaisPor Senhores ordinarios;Porque não pondes hum freioAo roubar, que vai sem meio,Debaixo de bom governo?Pois hum pedaço de infernoPor pouco dinheiro alheioSe vende a Mouro e a Judeo.Porque a mente, affeiçoadaSempre á Real dignidade,Vos faz julgar por bondadeA malicia desculpada.Move a presença RealHuma affeição natural,Que logo inclina ao JuizA seu favor: e não dizHum rifão muito geral,Que o Abbade donde canta, dahi janta?E vós bailais a esse som:Por isso, gentís pastores,Vos chama a vós mercadoresHum que só foi pastor bom.– oOo —A JOÃO LOPES LEITÃO,SÔBRE HUMA PEÇA DE CACHA QUE MANDOU A HUMA DAMA, QUE SE LHE FAZIA DONZELLAMoteSe vossa Dama vos dáTudo quanto vós quizestes,Dizei-me: p'ra que lhe déstesO que vos ella fez ja?VoltaSendo os restos envidados,E vós de cachas mil contosSabeis com quão poucos pontos,Que lhos achastes quebrados;Se o que tẽe, isso vos dá,Vós mui bem lho merecestes,Porque se a cacha lhe déstesTinha-vo-la feita ja.– oOo —MOTEMenina formosa e crua,Bem sei euQuem deixará de ser seu,Se vós quizereis ser sua.VoltasMenina mais que na idade,Se para me querer bemVos não vejo ter vontade,He porque outrem vo-la tem;Tẽe-vo-la, e faz-vo-la crua.Porém euJa tomára não ser meu,Se vós não foreis tão sua.Nos olhos, e na feiçãoVos vi, quando vos olhava,Tanta graça, que vos davaDe graça este coração:Não o quizestes de crua,Por ser meu:Se outrem vos dera o seu,Póde ser foreis mais sua.Menina, tende maneira,Que ainda não venha a ser,Pois não quereis quem vos quer,Que queirais quem vos não queira.Olhae não me sejais crua,Que pois euQuero ser vosso, e não meu,Sêde vós minha, e não sua.– oOo —A HUMA DAMA DOENTEMoteDa doença, em que ora ardeis,Eu fôra vossa mézinhaSó com vós serdes a minha.VoltasHe muito para notarCura tão bem acertada,Que podereis ser curadaSomente com me curar.Se quereis, Dama, trocar,Ambos temos a mézinha,Eu a vossa, e vós a minha.Olhae, que não quer Amor,(Porque fiquemos iguais)Pois meu ardor não curais,Que se cure vosso ardor.Eu cá sinto vossa dor;E se vós sentis a minha,Dae e tomae a mézinha.– oOo —OUTRODeo, Senhora, por sentençaAmor, que fosseis doente,Para fazerdes á genteDoce e formosa a doença.VoltasNão sabendo Amor curar,Foi a doença fazerFormosa para se ver,Doce para se passar.Então vendo a differençaQue ha de vós a toda a gente,Mandou, que fôsseis doente,Para glória da doença.E digo-vos de verdade,Que a saude anda invejosa,Por ver estar tão formosaEm vós essa enfermidade.Não façais logo detença,Senhora, em estar doente,Porque adoecerá a gente,Com desejos da doença.Qu'eu por ter, formosa Dama,A doença, qu'em vós vejo,Vos confesso, que desejoDe cahir comvosco em cama.Se consentis, que me vençaDeste mal, não houve genteDa saude tão contente,Como eu serei da doença.– oOo —AO MESMOOlhae que dura sentençaFoi amor dar contra mi!Que porqu'em vós me perdi,Em vós me busque a doença.Claro está,Que em vós só me achará;Qu'em mi, se me vem buscar,Não poderá mais achar,Que a fórma do que foi ja.Que s'em vós Amor se pôs,Senhora, he forçado assi,Que o mal, que me busca a mi,Que vos faça mal a vós.Sem mentir,Amor me quiz destruirPor modo nunca cuidado,Pois ha de ser ja forçadoPezar-vos de vos servir.Mas sois tão desconhecida,E são meus males de sorte,Que vos ameaça a morte,Porque me negais a vida.Se por boaTal justiça se pregoa;Quando desta sorte for,Havei vós perdão de Amor,Que a parte ja vos perdoa.Mas o que mais temo, emfim,He que nesta differença,Que se não torne a doença,Se me não tornais a mim.De verdade,Que ja vossa humanidadeDe que se queixe não tem;Pois para as almas tambemFez Amor enfermidade.– oOo —A HUMA DAMA VESTIDA DE DÓMoteDe atormentado e perdido,Ja vos não peço, senãoQue tenhais no coraçãoO que tendes no vestido.VoltaSe de dó vestida andaisPor quem ja vida não temPorque não o haveis de quemVós tantas vezes matais?Que brado sem ser ouvido,E nunca vejo senãoCruezas no coração,E grande dó no vestido.– oOo —A DONA GUIOMAR DE BLASFÉ, QUEIMANDO-SE COM HUMA VÉLA NO ROSTOMoteAmor, que todos offende,Teve, Senhora, por gôsto,Que sentisse o vosso rostoO que nas almas accende.VoltaAquelle rosto que trazO mundo todo abrazado,Se foi da flamma tocado,Foi porque sinta o que faz.Bem sei que Amor se vos rende;Porém o seu presuppostoFoi sentir o vosso rostoO que nas almas accende.– oOo —A HUMA MULHER, AÇOUTADA POR HUM HOMEM, QUE CHAMAVÃO QUARESMAMoteNão estejais aggravada,Senão se for de vós mesma;Porqu'a mulher, que he errada,Com razão pela QuaresmaDeve ser disciplinada.VoltasQuererdes profano amorEm Quaresma, he consciencia:Açoutes e penitenciaVos está muito melhor.Não fiqueis disto affrontada,Pois a culpa he vossa mesma;Que mulher, que he tão malvada,He bem que pela QuaresmaSeja bem disciplinada.Se a penitencia vos val,Mui bem açoutada estais;Pois por Quaresma pagaisVossos vicios do carnal.Não torneis a ser errada,Nem condemneis a vós mesma,Pois estais ja emendada;E não sereis por QuaresmaOutra vez disciplinada.– oOo —A HUM FIDALGO, QUE LHE TARDAVA COM HUMA CAMISA, QUE LHE PROMETTEOQuem no mundo quizer serHavido por singular,Para mais s'engrandecer,Ha de trazer sempre o darNas ancas do prometter.E ja que vossa mercê,Largueza tẽe por divisa,Como o mundo todo vê,Ha mister que tanto dê,Que venha a dar a camisa.– oOo —A HUMA DAMA, QUE LHE CHAMOU DIABO, POR NOME FOÃ DOS ANJOSMoteSenhora, pois me chamaisTão sem razão tão mão nome,Inda o diabo vos tome.VoltasQuem quer que vio, ou que leo,Terá por novo e moderno,Ter quem vive no inferno,O pensamento no ceo.Mas se a vós vos pareceo,Que m'estava bem tal nome,Esse diabo vos tome.Perdido mais que ninguemConfesso, Senhora, ser;Mas o diabo não querAos Anjos tamanho bem.Pois logo não me convem,Ou se me convem tal nome,Será para que vos tome.Se vos benzeis com cautella,Como de Anjo, e não de luz,Mal póde fugir da Cruz,Quem vós tendes pôsto nella.Mas ja que foi minha estrellaSer diabo, e ter tal nome,Guardae-vos, que vos não tome.Ja que chegais tanto ao cabo,Com as mãos, postas aos ceosVou sempre pedindo a Deos,Que vos leve este diabo.Eu, Senhora, não me gabo;Mas pois que me dais tal nome,Tomo-o, para que vos tome.– oOo —A HUM AMIGO, QUE NÃO PODIA ENCONTRARMoteQual terá culpa de nósNeste mal, que todo he meu?Quando vindes, não vou eu,Quando vou, não vindes vós.VoltaReinando Amor em dous peitos,Tece tantas falsidades,Que de conformes vontadesFaz desconformes effeitos.Igualmente vive em nós;Mas por desconcêrto seuVos leva, se venho eu,Me leva, se vindes vós.– oOo —MOTE SEUDescalça vai pela neve:Assi faz quem Amor serve.VoltasOs privilegios, que os ReisNão pódem dar, póde amor,Que faz qualquer amadorLivre das humanas leis.Mortes e guerras crueis,Ferro, frio, fogo e neve,Tudo soffre quem o serve.Moça formosa desprezaTodo o frio, e toda a dor.Olhae quanto póde AmorMais que a propria natureza.Medo, nem delicadezaLh'impede que passe a neve.Assi faz quem Amor serve.Por mais trabalhos que leve,A tudo se off'receria;Passa pela neve fria,Mais alva que a propria neve;Com todo frio se atreve.Vêde em que fogo ferveO triste, que a Amor serve.– oOo —OUTRO ALHEIOA dor que a minha alma sente,Não na sabe toda a gente.VoltasQu'estranho caso de Amor!Que desejado tormento!Que venho a ser avarentoDas dores de minha dor!Por me não tratar peor,Se se sabe, ou se se sente,Não na digo a toda a gente.Minha dor e causa dellaDe ninguem ouso fiar;Que sería aventurarA perder-me, ou a perdella.E pois só com padecella,A minha alma está contente,Não quero que o saiba a gente.Ande no peito escondida,Dentro n'alma sepultada;De mi só seja chorada,De ninguem seja sentida.Ou me mate, ou me dê vida,Ou viva triste ou contente,Não ma saiba toda a gente.– oOo —OUTRO SEUD'alma, e de quanto tiver,Quero que me despojeis,Com tanto, que me deixeisOs olhos para vos ver.VoltaCousa este corpo não tem,Que ja não tenhais rendida:Despois de tirar-lhe a vida,Tirae-lhe a morte tambem.Se mais tenho que perder,Mais quero que me leveis,Com tanto que me deixeisOs olhos para vos ver.– oOo —MOTE ALHEIOAmores de huma casada,Que eu vi pelo meu mal.VoltasN'huma casada fui pôrOs olhos, de si senhores:Cuidei que fossem amores,Elles fizerão-se amor.Faz-se o desejo maiorDonde o remedio não val,Em perigo de meu mal.Não me paraceo que AmorPudesse tanto comigo,Que donde entra por amigo,Se levante por senhor.Leva-me de dor em dor,E de final em final,Cada vez para mor mal.– oOo —OUTRO SEUEnforquei minha esperança;Mas Amor foi tão madraço,Que lhe cortou o baraço.VoltaFoi a esperança julgadaPor sentença da Ventura,Que pois me leve á pendura,Que fosse dependurada:Vem Cupido com a espada,Corta-lhe cerce o baraço.Cupido, foste madraço.– oOo —OUTRO SEUPuz o coração nos olhos,E os olhos puz no chão,Por vingar o coração.VoltaO coração invejosoComo dos olhos andava,Sempre remoques me davaQue não era o meu mimoso:Venho eu de piedosoDo Senhor meu coração,E boto os olhos no chão.– oOo —OUTRO SEUPuz meus olhos n'huma funda,E fiz hum tiro com ellaÁs grades d'huma janella.VoltaHuma Dama, de malvada,Tomou seus olhos na mão;E tirou-me huma pedradaCom elles ao coração.Armei minha funda então,E puz os meus olhos nella,Trape, quebrei-lhe a janella.– oOo —ALHEIODe pequena tomei amor,Porque o não entendi;Agora que o conheci,Mata-me com desfavor.VoltasVi-o moço e pequenino,E a mesma idade ensinaQue s'incline huma meninaÁs amostras d'hum menino:Ouvi-lhe chamar Amor,Pelo nome me venci;Nunca tal engano vi,Nem tamanho desamor.Cresceo-me de dia em diaCom a idade a affeição,Porque amor de criação,N'alma, e na vida se cria.Criou-se em mi este amor,E senhoreou-se de mi:Agora que o conheci,Mata-me com desfavor.As flores me torna abrolhos,A morte me determinaQuem eu trouxe de meninaNas meninas de meus olhos.Desta mágoa e desta dorTenho sabido que emfimPor amor me perco a mimPor quem de mi perde amor.Parece ser caso estranhoO que Amor em mi ordena,Qu'em idade tão pequenaHaja tormento tamanho.Sejão milagres d'Amor,Hei-os de soffrer assi,Até que haja dó de miQuem entender esta dor.– oOo —CANTIGA VELHAApartárão-se os meus olhosDe mi tão longe.Falsos amores,Falsos, maos, enganadores.VoltasTratárão-me com cautella,Por m'enganar mais asinha;Dei-lhe posse d'alma minha,Forão-me fugir com ella.Não ha vê-los, nem ha vella,De mi tão longe.Falsos amores,Falsos, maos, enganadores!Entreguei-lhe a liberdade,E, emfim, da vida o melhor;Forão-se; e do desamorFizerão necessidade.Quem teve a sua vontadeDe si tão longe?Falsos amores,E oxalá enganadores!– oOo —OUTRAFalso Cavalheiro, ingrato,Enganais-me,Vós dizeis, que eu vos mato,E vós matais-me.VoltasCostumadas artes sãoPara enganar innocencias,Piedosas apparenciasSôbre isento coração.Eu vos amo, e vós ingratoMagoais-me,Dizendo, que eu vos mato,E vós matais-me.Vêde agora qual de nósAnda mais perto do fim,Que a justiça faz-se em mim,E o pregão diz que sois vós.Quando mais verdade tratoLevantais-meQue vos desamo e vos mato,E vós matais-me.– oOo —PROPRIOSe de meu mal me contento,He porque para vós vejoEm todo o mundo desejo,E em ninguem merecimento.VoltaPara quem vos soube olharTão impossivel foi serO poder-vos merecer,Como o não vos desejar.Pois logo a meu pensamentoNenhum remedio lhe vejo,Senão se der o desejoAzas ao merecimento.– oOo —ALHEIOVós, Senhora, tudo tendes,Senão que tendes os olhos verdes.VoltasDotou em vós naturezaO summo da perfeição;Que o qu'em vós he senão,He em outras gentileza:O verde não se despreza,Que, agora que vós os tendes,São bellos os olhos verdes.Ouro e azul he a melhorCôr, por que a gente se perde;Mas a graça desse verdeTira a graça a toda côr.Fica agora sendo a florA côr, que nos olhos tendes,Porque são vossos e verdes.– oOo —ALHEIOPara que me dan tormento,Aprovechando tan poco?Perdido, mas no tan loco,Que descubra lo que siento.VoltasTiempo perdido es aquelQue se passa en darme afan,Pues cuanto más me lo dan,Tanto menos siento dél.Que descubra lo que siento?No lo haré, que no es tan poco;Que no puede ser tan locoQuien tiene tal pensamiento.Sepan que me manda Amor,Que de tan dulce querella,A nadie dé parte della,Porque la sienta mayor.Es tan dulce mi tormento,Que aun se me antoja poco;Y si es mucho, quedo locoDe gusto de lo que siento.– oOo —ALHEIODe vuestros ojos centellas,Que encienden pechos de hielo,Suben por el aire al cielo,Y en llegando son estrellas.VoltasFalsos loores os dan,Que essas centellas tan rarasNo son nel cielo mas clarasQue en los ojos donde estan.Porque cuando miro en ellasLo como alumbran al suelo,No sé que seran nel cielo;Mas sé que acá son estrellas.Ni se puede presumirQue al cielo suban, Señora;Que la lumbre que en vós mora,No tiene más que subir;Mas pienso que dan querellasÁ Dios nel octavo cielo,Porque son acá en el sueloDos tan hermosas estrellas.– oOo —ALHEIODe dentro tengo mi mal,Que de fuera no hay señal.VoltaMi nueva y dulce querellaEs invisible á la gente;El alma sola la siente,Que el cuerpo no es dino della.Como la viva centellaSe encubre en el pedernal,De dentro tengo mi mal.– oOo —ALHEIOAmor loco, amor loco,Yo por vós, y vós por otro.VoltasDióme Amor tormentos dós,Para que pene doblado;Uno es verme desamado,Otro es mancilla de vós.Ved que ordena Amor en nós!Porque vós haceisme loco,Que seais loca por otro.Tratais Amor de manera,Que porque asi me tratais,Quiere que, pues no me amais,Que ameis otro que no os quiera.Mas con todo, si no os vieraDe todo loca por otro,Con mas razon fuera loco.Y tan contrario viviendo,Alfin, alfin, conformamos;Pues ambos a dós buscamosLo que mas nos vá huyendo.Voy tras vós siempre siguiendo,Y vós huyendo por otro:Andais loca, y me haceis loco.– oOo —ALHEIOVêde bem se nos meus diasOs desgostos vi sobejos,Pois tenho medo a desejos,E quero mal a alegrias.VoltaSe desejos fui ja ter,Servírão de atormentar-me;Se algum bem póde alegrar-me,Quiz-me antes entristecer.Passei annos, passei diasEm desgostos tão sobejos,Que só por não ter desejos,Perderei mil alegrias.– oOo —PROPIOPois he mais vosso que meu,Senhora, meu coração,Eu vosso captivo são,Meus olhos, lembre-vos eu.VoltaLembre-vos minha tristeza,Que jamais nunca me deixa;Lembre-vos com quanta queixaSe queixa minha firmeza:Lembre-vos que não he meuEste triste coração;E pois ha tanta razão,Meus olhos, lembre-vos eu.– oOo —OUTROSenhora, pois minha vidaTendes em vosso poder;Por serdes della servida,Não queirais que destruidaPossa ser.VoltaIsto não por me pezarDe morrer, se vós quizerdes;Que melhor me he acabarMil vezes, que supportarOs males que me fizerdes;Mas só por serdes servidaDe mi, em quanto viver,Vos peço que minha vidaNão queirais que destruidaPossa ser.– oOo —OUTROPois damno me faz olhar-vos,Não quero, por não perder-vos,Que ninguem me veja ver-vos.VoltasDe ver-vos a não vos verHa dous extremos mortaes;E são elles em si taes,Que hum por hum me faz morrer;Mas antes quero escolher,Que possa viver sem ver-vos,Minh'alma, por não perder-vos.Deste tamanho perigoQue remedio posso ter,Se vivo só com vos ver,Se vos não vejo, perigo?Mas quero acabar comigo,Que ninguem me veja ver-vos,Senhora, por não perder-vos.– oOo —A TRES DAMAS, QUE LHE DIZIÃO QUE O AMAVÃOMoteNão sei se m'engana Helena,Se Maria, se Joanna;Não sei qual dellas m'engana.VoltasHuma diz que me quer bem,Outra jura que me quer;Mas em jura de mulherQuem crerá, se ellas não crem?Não posso não crer a Helena,A Maria, nem Joanna;Mas não sei qual mais m'engana.Huma faz-me juramentosQue só meu amor estima,A outra diz que se fina,Joanna, que bebe os ventos.Se cuido que mente Helena,Tambem mentirá Joanna;Mas quem mente não m'engana.– oOo —A HUMA DAMA MAL EMPREGADAMoteMenina, não sei dizer,Vendo-vos tão acabada,Quão triste estou por vos verFormosa e mal empregada.VoltasQuem tão mal vos empregou,Pouco de mi se dohia,Pois não vio o quanto me hiaEm tirar-me o que tirou.Obriga o primor que temLindeza tão extremadaQue digão quantos a vem,Formosa e mal empregada!Tomastes da formosuraQuanto della desejastes,E com ella me guardastesPara tão triste ventura.Mataveis sendo solteira,Matais agora em casada;Matais de toda a maneira,Formosa e mal empregada.– oOo —A HUMA Foãa GonçalvesMoteCom vossos olhos, Gonçalves,Senhora, captivo tendesEste meu coração Mendes.VoltaEu sou boa testimunha,Que Amor tem por cousa má,Que olhos, que são homens ja,Se nomeiem sem alcunha;Pois o coração apunha,E diz, olhos, pois vós tendes,Chamae-me coração Mendes.– oOo —OUTRODe que me serve fugirDe morte, dor e perigo,Se me eu levo comigo?VoltasTenho-me persuadido,Por razão conveniente,Que não posso ser contente,Pois que pude ser nascido.Anda sempre tão unidoO meu tormento comigo,Qu'eu mesmo sou meu perigo.E se de mi me livrasse,Nenhum gôsto me sería:Quem, senão eu, não teriaMal, que esse bem me tirasse?Fôrça he logo que assi passe,Ou com desgôsto comigo,Ou sem gôsto e sem perigo.– oOo —A HUMA DAMA, QUE JURAVA PELOS SEUS OLHOSQuando me quer enganarA minha bella perjura,Para mais me confirmarO que quer certificar,Polos seus olhos me jura.Como meu contentamentoTodo se rege por elles,Imagina o pensamento,Que se faz aggravo a ellesNão crer tão grão juramento.Porém como em casos taisAndo ja visto e corrente,Sem outros certos sinais,Quanto me ella jura mais,Tanto mais cuido que mente.Então vendo-lhe offenderHuns taes olhos como aquelles,Deixo-me antes tudo crer,Só pola não constrangerA jurar falso por elles.– oOo —MOTE ALHEIOHa hum bem, que chega e foge;E chama-se este bem tal,Ter bem para sentir mal.VoltaQuem viveo sempre n'hum ser,Inda que seja em pobreza,Não vio o bem da riqueza,Nem o mal d'empobrecer:Não ganhou para perder;Mas ganhou com vida igualNão ter bem, nem sentir mal.– oOo —A HUMA DAMA, QUE LHE VIROU O ROSTOMoteOlhos, não vos mereciQue tenhais tal condição,Tão liberaes para o chão,Tão irosos para mi.VoltaBaixos e honestos andais,Por vos negardes a quemNão quer mais que aquelle bem,Que vós no chão espalhais?Se pouco vos mereci,Não m'estimeis mais que o chão,A quem vós o galardãoDais, e mo negais a mi.– oOo —PROPRIOVenceo-me Amor, não o nego;Tẽe mais fôrça qu'eu assaz;Que como he cego e rapaz,Dá-me porrada de cego.VoltaSó porque he rapaz ruim,Dei-lhe hum boféte zombando.Diz-me: Ó mao, estais me dando,Porque sois maior que mim?Pois se eu vos descarrégo,E em dizendo isto, chaz;Torna-me outra; tá rapaz,Que dás porrada de cego.– oOo —AO DESCONCERTO DO MUNDOOs bons vi sempre passarNo mundo graves tormentos;E para mais m'espantar,Os maos vi sempre nadarEm mar de contentamentos.Cuidando alcançar assiO bem tão mal ordenado,Fui mao; mas fui castigado.Assi, que só para miAnda o mundo concertado.– oOo —A HUMA DAMA, PERGUNTANDO-LHE QUEM O MATAVAMotePerguntais-me, quem me mata?Não quero responder nada,Por vos não fazer culpada.VoltaE se a penna não me atiça,A dizer pena tão forte,Quero-me entregar á morte,Antes que a vós á justiça.Porém se tendes cobiçaDe vos verdes tão culpada,Direi que não sinto nada.– oOo —MOTEEsconjuro-te, Domingas,Pois me dás tanto cuidado,Que me digas se te vingas,Viverei menos penado.VoltasJuravas-me, que outras cabrasFolgavas de apascentar;Eu por não me magoar,Fingia qu'erão palabras.Agora d'arte te vingasD'algum meu doudo peccado,Qu'inda que queiras, Domingas,Não posso ser enganado.Qualquer cousa busca o seu;A fonte vai para o Tejo,E tu para o teu desejo,Por te vingares do meu.De mi t'esqueces, Domingas,Como eu faço do meu gado:Praza a Deos, que se te vingas,Que morra desesperado.Na phantasia te pinto,Fallo-te, responde o monte,Busco o rio, busco a fonte,Endoudeço, e não o sinto:Domingas no valle brado,Responde o eco Domingas;E tu inda te não vingasDe me ver doudo tornado!– oOo —ALHEIOSe a alma ver-se não pódeOnde pensamentos ferem,Que farei para me crerem?VoltasSe n'alma huma só feridaFaz na vida mil sinais,Tanto se descobre mais,Quanto he mais escondida.S'esta dor tão conhecidaMe não vem, porque não querem,Que farei para ma crerem?Se se pudesse bem verQuanto callo, e quanto sento,Despois de tanto tormentoCuidaria alegre ser.Mas se não me querem crerOlhos, que tão mal me ferem,Que farei para me crerem?– oOo —ALHEIOVosso bem querer, Senhora,Vosso mal melhor me fôra.VoltasJa agora certo conheçoSer melhor todo tormento,Onde o arrependimentoSe compra por justo preço.Enganou-me hum bom comêço;Mas o fim me diz agoraQue o mal melhor me fôra.Quando hum bem he tão damnoso,Que sendo bem, dá cuidado,O damno fica obrigadoA ser menos perigoso.Mas se a mi por desditoso,Co'o bem me foi mal, Senhora,Co'o vosso mal bem me fôra.– oOo —ALHEIOSe me desta terra for,Eu vos levarei, amor.VoltasSe me for, e vos deixar,(Ponho por caso, que possa)Est'alma minha, qu'he vossa,Comvosco m'ha de ficar.Assi que só por levarA minha alma, se me for,Vos levarei, meu amor.Que mal póde maltratar-me,Que comvosco seja mal?Ou que bem póde ser tal,Que sem vós possa alegrar-me?O mal não póde enojar-me,O bem me será maior,Se vos levar, meu amor.– oOo —ALHEIOPequenos contentamentos,Hi buscar quem contenteis,Que a mi não me conheceis.VoltasOs gostos, que tantas doresFizerão ja valer menos,Não os acceita pequenos,Quem nunca teve maiores:Bem parecem vãos favores,Pois tão tarde me quereis,Qu'inda me não conheceis.Offereceis-me alegria,Tendo-me ja cego e mouco:He baixeza acceitar pouco,Quem tanto vos merecia.Ide-vos por outra via,Pois o bem que me deveis,Nunca mo satisfareis.– oOo —ALHEIOPerdigão perdeo a penna,Não ha mal que lhe não venha.VoltasPerdigão, que o pensamentoSubio a hum alto lugar,Perde a penna do voar,Ganha a pena do tormento:Não tẽe no ar, nem no vento,Azas com que se sostenha:Não ha mal que lhe não venha.Quiz voar a huma alta torre,Mas achou-se desasado;E vendo-se despennado,De puro penado morre.Se a queixumes se soccorre,Lança no fogo mais lenha:Não ha mal que lhe não venha.– oOo —A HUMAS SENHORAS, QUE HAVIÃO SER TERCEIRAS PARA COM HUMA DAMAPois a tantas perdições,Senhoras, quereis dar vida,Ditosa seja a ferida,Que tẽe taes Cirurgiões!Pois venturaMe subio a tanta altura,Que me sejais valedoras,Ditosa seja a tristura,Que se curaPor vossos rogos, Senhoras!Ser minha pena mortal,Ja qu'entendeis, que he assi,Não quero fallar por mi,Que por mi falla meu mal.Sois formosas,Haveis de ser piedosas,Por ser tudo d'huma côr;Que pois Amor vos fez rosasMilagrosas,Fazei milagres de Amor.Pedi a quem vós sabeis,Que saiba de meu trabalho,Não pelo qu'eu nisso valho,Mas pelo que vós valeis.Que o valerDe vosso alto merecer,Com lho pedir de giolhos,Fara qu'em meu padecerPossa verO poder que tẽe seus olhos.Vossa muita formosuraCom a sua tanto val,Que me rio de meu mal,Quando cuido em quem me cura.A meus ais,Peço-vos que lhe valhais,Damas de Amor tão valídas,Que nunca tal dor sintais,Que queirais,Onde não sejais queridas.– oOo —CANTIGA ALHEIANa fonte está LeonorLavando a talha, e chorando,Ás amigas perguntando:Vistes lá o meu amor?VoltasPôsto o pensamento nelle,Porque a tudo o Amor a obriga,Cantava, mas a cantigaErão suspiros por elle.Nisto estava LeonorO seu desejo enganando,Ás amigas perguntando:Vistes lá o meu amor?O rosto sôbre hũa mão,Os olhos no chão pregados,Que de chorar ja cansados,Algum descanso lhe dão;Desta sorte LeonorSuspende de quando em quandoSua dor; e em si tornando,Mais pezada sente a dor.Não deita dos olhos ágoa,Que não quer que a dor s'abrandeAmor, porque em mágoa grandeSécca as lagrimas a mágoa.Despois que de seu amorSoube novas perguntando,D'improviso a vi chorando.Olhae que extremos de dor!– oOo —ESTAS TROVAS MANDOU O AUTOR DA CADEIA, EM QUE O TINHA EMBARGADO POR HUMA DIVIDA MIGUEL ROIZ, FIOS SECOS D'ALCUNHA, AO CONDE DO REDONDO D. FRANCISCO COUTINHO, VISO-REI, QUE SE EMBARCAVA PARA FÓRA, PEDINDO-LHE O FIZESSE DESEMBARGARQue diabo ha tão damnado,Que não tema a cutiladaDos fios seccos da espadaDo fero Miguel armado?Pois se tanto hum golpe seuSôa na infernal cadeia;Do que o demonio arreceiaComo não fugirei eu?Com razão lhe fugiria,Se contr'elle, e contra tudoNão tivesse hum forte escudoSó em Vossa Senhoria.Por tanto, Senhor, proveja,Pois me tẽe ao remo atado,Que antes que seja embarcado,Eu desembargado seja.– oOo —ESTAS TROVAS MANDOU HEITOR DA SILVEIRA AO MESMO CONDE, INVERNANDO EM GOAVossa Senhoria creiaQue não apura o engenhoFome, se he como a que tenho,Mas afraca e corta a veia.E quem o contrário sente,Está farto em toda a hora,Como estou faminto agora:Mas Martha, se está contente,Dá-lhe pouco de quem chora.E pois Vossa SenhoriaEm geral a tudo acode,Acuda a mi, que só pódeDar-me no engenho valia.Esperte esta Musa minha,Que o tempo traz somnolenta;Valha-lhe nesta tormentaCom essa doce mézinha,Que só dá vida e contenta.Acuda com provisão,Não de papel, mas provídaD'ouro e prata; que esta vidaNão sustentão papéis, não.De feitor a thesoureiroSer-me-hia trabalho grande;Vossa Senhoria mandeAlgum remedio, primeiro,Com que a morte o ferro abrande.Ajuda de Luis de CamõesNos livros doutos se trataQue o grande Achilles insanoDeo a morte a Heitor Troiano;Mas agora a fome mataO nosso Heitor Lusitano.Só ella o póde acabar,Se essa vossa condiçãoLiberal e singularNão mete entr'elles bastão,Bastante para o fartar.– oOo —A HUMA SENHORA, QUE LHE CHAMOU DIABOEsparsaNão posso chegar ao caboDe tamanho desarranjo,Que sendo vós, Senhora, Anjo,Vos queira tanto o Diabo.Dais manifesto sinalDe minha muita firmeza,Que os diabos querem malAos Anjos por natureza.– oOo —CANTIGAVi chorar huns claros olhos,Quando delles me partia.Oh que mágoa! Oh que alegria!VoltasPolo meu apartamentoSe arrazárão todos d'ágoa.Quem cuidou qu'em tanta mágoaAchasse contentamento?Julgue todo entendimentoQual mais sentir se devia,Se esta dor, se esta alegria?Quando mais perdido estive,Então deo a est'alma minhaNa maior mágoa que tinha,O maior gôsto que tive.Assi, se minha alma vive,Foi porque me defendiaDesta dor esta alegria?O bem, que Amor me não deuNo tempo que desejei,Quando delle me apartei,Me confessou, qu'era meu.Agora que farei eu,Se a fortuna me desviaDe lograr esta alegria?Não sei se foi enganado,Pois me tinha defendidoDas íras de mal querido,No mal de ser apartado.Agora peno dobrado,Achando no fim do diaO princípio da alegria.– oOo —VILLANCETE PASTORILDeos te salve, Vasco amigo.Não me fallas? Como assi?Bofé, Gil, não 'stava aqui.VoltasPois onde te hão de fallar,Se não 'stás onde appareces?Se Magdanela conheces,Nella me pódes achar.E como te hão d'ir buscarAonde fogem de ti?Pois nem eu estou em mi.Porque te não achareiEm ti, como em Magdanela?Porque me fui perder nellaO dia que me ganhei.Quem tão bem falla, não seiComo anda fóra de si.Ella falla dentro em mi.Como estás aqui presente,Se lá tens a alma e a vida?Porqu'he d'hum'alma perdidaApparecer sempre á gente.Se es morto, bem se consenteQue todos fujão de ti.Eu tambem fujo de mi.– oOo —OUTRO PASTORILPorque no miras, Giraldo,Mi zampoña como suena?Porque no me mira Elena.VoltasVuelve acá, no estês pasmado,Mira que gentil sonar!Como te podrá mirarQuien no puede ser mirado?Y que bueno enamorado!No dirás, si es mala, o buena?No, que me hizo mudo Elena.Mira tan dulce armonía,Déjate dessos enojos.Tengo clavados los ojosCon que mirar te podia.Ansí Dios te dé alegría:No vés cuan dulce que suena?No, porque no veo Elena.– oOo —OUTRO PASTORILCrescem, Camilla, os abrolhosDe chorares por Cincero:Não he muito, que lhe quero,Belisa, mais que meus olhos.VoltasSempre os teus olhos estão,Camilla, d'ágoas banhados.De se verem desamadosPóde ser que chorarão.Si, mas crescem os abrolhos,E tu cegas por Cincero.S'eu não vejo quem mais quero,Para que quero mais olhos?Se se foi ha mais d'hum mês,Teus olhos não cansarão?Não, que apos elle se vãoEstas lagrimas que vês.Fazem logo estes abrolhosO mato espinhoso e fero.Pois eu não vejo a Cincero,Isso só verão meus olhos.Chorando queres morrer?Mais quero viver chorando.Tu não vês que vás cegando?Se cego, como hei de ver?Põe na vista outros antolhos.Não posso, nem menos quero.Outra para outro Cincero,Antes não quero ter olhos.– oOo —A HUMA MULHER, QUE SE CHAMAVA GRACIA DE MORAESMoteOlhos, em qu'estão mil flores,E com tanta graça olhais,Que parece que os AmoresMorão onde vós morais.VoltaVem-se rosas e boninas,Olhos, nesse vosso ver;Vem-se mil almas arderNo fogo dessas meninas.E di-lo-hão minhas dores,Meus suspiros e meus ais;E dirão mais, que os amoresMorão onde vós morais.– oOo —MOTEQuem se confia em huns olhos,Nas meninas delles vêQue meninas não tẽe fé.VoltasQuem põe suas confiançasEm meninas sem assento,Offereça o soffrimentoA duzentas mil mudanças.Mostrão no ar esperanças;Mas em seus olhos se vêComo não tẽe n'alma fé.Enganão ao parecer,Porque no caso d'amar,São mulheres no matar,E meninas no querer.Quem em seus olhos se crer,Cem mil graças nelles vê;Vê-las sim, mas não ter fé.Amostrão-vos n'hum momentoFavores assi a mólhos;Mas na mudança dos olhosSe lhe muda o pensamento.Em nada ja tẽe assento,E o que mais nelles se vêHe formosura sem fé.– oOo —LOUVANDO E DESLOUVANDO UMA DAMACantiga VelhaSois formosa, e tudo tendes,Senão que tendes os olhos verdes,VoltasNinguem vos póde tirarSerdes tão bem assombrada;Mas heis-me de perdoar,Que os olhos não valem nada.Fostes mal aconselhadaEm querer que fossem verdes:Trabalhae de os esconderdes.A vossa testa he jardim,Onde Amor se desenfada;He tão branca e bem talhada,Que parece de marfim.Assi he; e quanto a mim,Isso vos nasce de a terdesTão perto dos olhos verdes.Os cabellos desatadosO mesmo sol escurecem;Senão que por ser ondados,Algum tanto desmerecem:Mas á fé, que se parecemA furto dos olhos verdes,Não vos peze, não, de os terdes.As pestanas tẽe mostradoSer raios, que abrazão vidas:Se não forão tão compridas,Tudo o mais era pintado:Ellas me tinhão levadoA alma, sem o vós saberdes,Se não forão os olhos verdes.O mimo desse carãoNem pôr-lhe os olhos consente:O ser liso e transparenteRouba todo o coração:Inda assi achareis nação,Que lhe não peze de os verdes;Mas não seja co'os olhos verdes.Esse riso, que he compôstoDe quantas graças nascêrão,Senão que alguns me disserão,Vos faz covinhas no rôsto.Na vontade tenho postoDar-vos a alma, se quizerdes,A trôco dos olhos verdes.Nunca se vio, nem se escreveBoca co'huma graça igual,Se não fôra de coral,E os dentes de côr de neve.Dou-me eu a Deos, que me leve!Soffrerei quanto tiverdes,Não me tenhais olhos verdes.Essa garganta mereceOutras palavras não minhas,Senão qu'he feita em rosquinhasD'alfenim, ao que parece.Eu sei bem quem se offereceA tomar tudo o que tendes,E tambem os olhos verdes.Essas mãos são ferropeas:Só o vê-las enfeitiça;Senão que são alvas, cheias,E tẽe a feição roliça;Com que appellais por justiça,Para com ellas prenderdesQuem vê vossos olhos verdes.A vossa galantariaMatará a quem fallardes:Tendes huns desdens e tardes,Que eu logo vos roubaria.Oh dou-me a Santa Maria!Sou cujo de quanto tendes,E tambem desses olhos verdes.– oOo —AO MESMOTudo tendes singular,Com que os corações rendeis,Senão que rindo, fazeisCovinhas para enterrar:E para resuscitarTẽe força a graça que tendes;Senão que tendes os olhos verdes.Tudo, Senhora, alcançais,Quanto o ser formosa alcança,Senão que dais esperançaCo'os olhos com que matais.Se acaso os alevantais,He para as almas renderdes;Senão que tendes os olhos verdes.– oOo —A DOM ANTONIO, SENHOR DE CASCAES, QUE TENDO-LHE PROMETTIDO SEIS GALLINHAS RECHEADAS POR HUMA COPLA QUE LHE FIZERA, LHE MANDOU POR PRINCÍPIO DA PAGA MEIA GALLINHA RECHEADACinco gallinhas e meiaDeve o Senhor de Cascais;E a meia vinha cheiaDe appetite para as mais.– oOo —MOTECatharina bem promette;Ora má! como ella mente!VoltasCatharina he mais formosaPara mi, que a luz do dia;Mas mais formosa sería,Se não fosse mentirosa.Hoje a vejo piedosa,Á manhãa tão differente,Que sempre cuido que mente.Prometteo-me hontem de vir,Nunca mais appareceo;Creio que não prometteo,Senão só por me mentir.Faz-me, emfim, chorar e rir;Rio, quando me promette,Mas chóro quando me mente.Jurou-me aquella cadellaDe vir, pela alma que tinha;Enganou-me; tinha a minha;Deo-lhe pouco de perdella.A vida gasto apos ella,Porque ma dá, se promette,Mas tira-ma, quando mente.Má, mentirosa, malvada,Dizei, porque me mentis?Prometteis, e então fugis?Pois sem tornar, tudo he nada.Não sois bem aconselhada;Que quem promette, se mente,O que perde não o sente.Tudo vos consentiriaQuanto quizesseis fazer,Se este vosso prometterFosse por me ter hum dia.Todo então me desfariaCom gôsto; e vós de contente,Zombarieis de quem mente.Mas pois folgais de mentir,Promettendo de me ver,Eu vos deixo o prometter,Deixae-me vós o servir:Haveis então de sentirQuanto a minha vida senteO servir a quem lhe mente.Catharina me mentioMuitas vezes, sem ter lei,E todas lhe perdoeiPor huma só que cumprio.Se como me consentioFallar-lhe, o mais me consente,Nunca mais direi que mente.– oOo —MOTEA alma, qu'está offrecidaA tudo, nada lhe he forte;Assi passa o bem da vida,Como passa o mal da morte.VoltaDe maneira me succedeO que temo, e o que desejo,Que sempre o que temo, vejo,Nunca o que a vontade pede.Tenho tão offerecidaAlma e vida a toda a sorte,Que isso me dera da morte,Como ja me dá da vida.– oOo —MOTEFerro, fogo, frio e calma,Todo o mundo acabarão;Mas nunca vos tirarão,Alma minha, da minha alma.VoltaNão vos guardei, quando vinha,Em tôrre, fôrça, ou engenho;Que mais guardada vos tenhoEm vós, que sois alma minha.Alli nem frio, nem calma,Não podem ter jurdição;Na vida sim, porém nãoEm vós que tenho por alma.– oOo —MOTEEsperei, ja não esperoDe mais vos servir, Senhora;Pois me fazeis cada horaTanto mal, que desespéro.VoltaPois sei certo que folgais,Quando mais mal me fazeis,E que nunca descansais,Senão quando me mostraisQuão pouco bem me quereis;Servir-vos mais não esperoPois meu viver empeoraCom me fazerdes, Senhora,Tanto mal, que desespéro.– oOo —MOTEDescalça vai para a fonteLeonor pela verdura;Vai formosa, e não segura.VoltasLeva na cabeça o pote,O testo nas mãos de prata,Cinta de fina escarlata,Sainho de chamalote:Traz a vasquinha de cote,Mais branca que a neve pura;Vai formosa, e não segura.Descobre a touca a garganta,Cabellos de ouro entrançado,Fita de côr d'encarnado,Tão linda que o mundo espanta:Chove nella graça tanta,Que dá graça á formosura;Vai formosa, e não segura.– oOo —MOTEQuem disser que a barca pende,Dir-lhe-hei, mana, que mente.VoltasSe vos quereis embarcar,E para isso estais no caes,Entrae logo: que tardaes?Olhae qu'está preamar:E se outrem, por vos fretar,Vos disser qu'esta que pende,Dir-lhe-hei, mana, que mente.Esta barca he de carreira;Tẽe seus apparelhos novos:Não ha como ella outra em PovosBoa de leme, e veleira:Mas, se por ser a primeira,Vos disser alguem que pende,Dir-lhe-hei, mana, que mente.– oOo —MOTECom razão queixar-me possoDe vós, que mal vos queixais;Pois, Senhora, vos sangrais,Que seja n'hum corpo vosso.VoltasEu para levar a palma,Com que ser vosso mereça,Quero que o corpo padeçaPor vós, que delle sois alma.Vós do corpo vos queixais,Eu queixar-me de vós posso,Porque, tendo hum corpo vosso,Na minha alma vos sangrais.E sem fazer differençaNo que de mi possuis,Pelo pouco que sentis,Dais á minh'alma doença.Porque dous aventurais?Oh não seja o damno nosso!Sangre-se este corpo vosso,Porque, minha alma, vivais.E inda, se attentardes bem,Seguis medicina errada,Porque para ser sangradaHum'alma sangue não tem.E pois em mi sarar possoMales, que á minha alma dais,Se inda outra vez vos sangrais,Seja neste corpo vosso.– oOo —MOTEOjos, herido me habeis,Acabad ya de matarme;Mas muerto volved á mirarme,Porque me resusciteis.VoltasPues me distes tal herida,Con gana de darme muerte,El morir me es dulce suerte,Pues con morir me dais vida.Ojos, qué os deteneis?Acabad ya de matarme;Mas muerto volved á mirarme,Porque me resusciteis.La llaga cierto ya es mia,Aunque, ojos, vós no querrais;Mas si la muerte me dais,El morir me es alegría.Y así digo que acabeis,O ojos, ya de matarme;Mas muerto volved á mirarme,Porque me resusciteis.– oOo —A DONA FRANCISCA DE ARAGÃO, QUE LHE MANDOU GLOSAR ESTE VERSO:Mas porém a que cuidados?Tanto maiores tormentosForão sempre os que soffri,Daquillo que cabe em mi,Que não sei que pensamentosSão os para que nasci.Quando vejo este meu peitoA perigos arriscadosInclinado, bem suspeitoQue a cuidados sou sujeito,Mas porém a que cuidados?Ao mesmoQue vindes em mi buscar,Cuidados, que sou captivo?Eu não tenho que vos dar:Se vindes a me matar,Ja ha muito que não vivo:Se vindes, porque me daisTormentos desesperados,Eu, que sempre soffri mais,Não digo que não venhais;Mas porém a que cuidados?Ao mesmoSe as penas que Amor me deu,Vem por tão suaves meios,Não ha que temer receios;Que val hum cuidado meuPor mil descansos alheios.Ter n'huns olhos tão formososOs sentidos enlevados,Bem sei qu'em baixos estadosSão cuidados perigosos;Mas porém a que cuidados?..Carta com a glosa acima

Deixei-me enterrar no esquecimento de v. m. crendo me sería assi mais seguro: mas agora que he servida de me tornar a resuscitar, por me mostrar seus poderes, lembro-lhe que huma vida trabalhosa he menos de agradecer, que huma morte descansada. Mas se esta vida, que agora de novo me dá, for para ma tornar a tomar, servindo-se della, não me fica mais que desejar, que poder acertar com este mote de v. m., ao qual dei tres entendimentos, segundo as palavras delle pudérão soffrer: se forem bons, he mote de v. m.: se maos, são as glosas minhas.

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