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Dance, Meu Anjo
Caitlyn é a atração principal do American Ballet Theatre em Nova York há vários anos.
Solitária e retraída, sua vida gira em torno da dança e sua maior admiradora não é outra senão a sua avó.
Tudo muda quando alguém começa a assediá-la. Quem poderia ser e com que finalidade? Sua avó está pronta para fazer qualquer coisa para protegê-la, inclusive colocá-la no caminho de seu misterioso vizinho Baraqiel.
Brazilian portuguese version
Dance, Meu Anjo
Os Anjos Caídos Volume 1
Virginie T.
Traduzido por Maria Regina Barbuto
© 2020. T. Virginie
Depósito legal: fevereiro de 2020
Capítulo 1
Caitlyn
Pelo tempo em que já danço, não deveria mais ficar tão estressada. Afinal, os ensaios acontecem sempre da mesma maneira e eu já consegui o papel principal, como nas cinco vezes anteriores. Não sou chamada de estrela em ascensão do American Ballet Theatre e estou longe de roubarem o meu lugar. Lutei e sacrifiquei-me muito para chegar até aqui. A dança é parte integrante da minha vida, do meu ser, e nem pensar em deixar os últimos eventos me impedirem de ser eu mesma. Fecho os olhos, ignoro tudo o que se passa ao meu redor e recordo as etapas cruciais que me trouxeram a esse momento.
Cheguei a Nova York nos meus anos de juventude, graças ao meu professor de dança na época e sua insistência constante com meus pais. Nunca poderei lhe agradecer o suficiente pelo futuro que me permitiu ter. Ainda me lembro da pressão a que ele submeteu os meus pais. Mason Jaz é alguém muito determinado, para dizer o mínimo, e meu sucesso foi muito importante para ele. Comecei no balé clássico aos quatro anos de idade, como muitas garotinhas, empurrada por minha mãe que esperava canalizar meu excesso de energia, ao mesmo tempo em que me permitia me abrir para o mundo e para as pessoas ao meu redor. Com um metro de altura, eu era uma criança muito fechada, em busca de uma saída para o turbilhão de emoções que estavam latentes em mim e a respeito dos quais eu não entendia. Tudo era fonte de conflitos interiores, estresse, até ataques de pânico. Por isso, fiz uma escolha muito cedo, de falar muito pouco e ficar longe de quaisquer interações sociais. Um médico me diagnosticou com uma forma de autismo, moderada o suficiente para me permitir ter uma vida quase normal e capacidade intelectual média, mas suficientemente desenvolvida para que as relações humanas sejam um problema real para mim. Naquela época, esse fato não significava nada para a criança pequena que eu era, só que eu era diferente das outras crianças, e não precisava daquele cavalheiro de jaleco branco para constatar a situação. Minha mãe pensou que dançar poderia ser um remédio para os meus problemas, um meio de expressar o que eu mantinha no corpo e no coração. Se ela soubesse até que ponto isso nos levaria, talvez pensasse duas vezes. Mason rapidamente viu meu potencial e, de um simples passatempo, essa atividade se tornou a minha paixão, devoradora, invasiva e que mudou a vida de toda a família e sua visão do futuro.
A dança tinha sido de fato um remédio verdadeiramente milagroso. Por meio dela, expressei tudo o que sentia dentro de mim: raiva, inveja, amor. Comecei a dançar em competições com apenas seis anos de idade, impressionando os jurados com a minha maturidade e ganhando prêmios a cada vez; meus pais, com boa vontade, levaram-me de cidade em cidade, percorrendo a Flórida de cima a baixo. Na época, meus pais fizeram de tudo para não atrapalhar o meu progresso, deixando de lado seus próprios desejos e necessidades. Nada mais existia, exceto a dança; no final, era exatamente o oposto do que meus pais queriam, desejosos que eu me abrisse para o mundo. Minha agenda escolar ficou sobrecarregada, com as aulas clássicas da escola que eu era obrigada a frequentar e as 10 horas de dança por semana, mas estas nunca foram o suficiente para mim. Já naquela época, eu vivia apenas para isso. Meu pai trabalhou inúmeras horas extras para pagar minhas aulas e o orçamento da família era apertado, embora Mason não nos cobrasse tudo. Meus pais tiveram que desistir de seu desejo de ter um segundo filho por falta de tempo e de recursos. Quando eu tinha oito anos, tornou-se óbvio para todos que as coisas não podiam continuar assim para sempre. O problema era que dançar havia se tornado uma droga para mim e eu não conseguia ficar sem ela. As semanas de férias sempre foram uma verdadeira tortura sensorial, apesar do meu treinamento solitário, e o retorno às aulas de dança, um alívio real, o sopro de oxigênio indispensável à minha sobrevivência. Então, meu professor discutiu com meus pais sobre a ideia de me enviar para Nova York, para a escola americana de balé, o paraíso na terra aos meus olhos. A recusa categórica e imediata deles foi uma facada no meu pequeno coração. Eles me negaram o direito de ser normal, de ser eu mesma. Em retrospectiva, percebo todos os sacrifícios que fizeram para realizar o meu sonho, mas, na época, eu era jovem demais para entender e ressentia-me deles. Muito.
— Enviem-me para esta escola especializada, por favor. Mason disse que ela seria perfeita para mim.
— Não é possível, Caitlyn. Temos emprego, amigos, casa e está fora de questão que você vá sozinha para um lugar a milhares de quilômetros de distância.
— Mas estou sempre sozinha, de qualquer maneira, então qual é a diferença???
Saí sob o olhar magoado deles, para me refugiar na casa de minha confidente e fã incondicional número um, minha avó, que morava a poucos quarteirões de distância.
— Vovó, eles se recusam a me deixar realizar meu sonho. Preferem que eu termine como uma garçonete, mas nasci para dançar. Você sabe disso. Posso dizer tudo com os meus passos. Preciso deles para me sentir bem. Por que não entendem isso?
— Oh, minha Caitlyn Cat, acalme-se. Venha dar um abraço na vovó.
Aninhada em seus braços, ouvindo sua respiração lenta e regular, meus tormentos sempre diminuíam. Ainda hoje, ela tem aquele perfume de rosas que sobe à cabeça e voz calma, resultante de uma longa experiência de vida. Sempre foi a única com quem me senti igual a todo mundo. Ela me entende mesmo quando não emito um som. Nunca me considerou estranha, apenas como sua amada neta a quem apelidou carinhosamente de “Caitlyn Cat”.
— Tudo acabará dando certo a seu tempo, minha Cat. Você verá.
Não acreditei, mas não disse nada porque ela era e ainda é a pessoa que eu não desejaria decepcionar sob qualquer circunstância. Além disso, minha avó estava certa. Demorou dois anos. Dois longos anos de batalha entre meus pais teimosos e meu professor persistente, dois anos de frustração e de ir e voltar para a casa da vovó para me acalmar, mas acabamos saindo da Flórida. Meus pais conseguiram uma transferência para Nova York para poder me acompanhar nessa aventura, considerando-me jovem demais para ficar longe da minha família. Aquele dia foi um verdadeiro sofrimento. Na minha pressa de frequentar uma escola especializada que atendesse às minhas expectativas, não percebi que deixar aquele lugar ensolarado significava me afastar da minha avó. Foi uma dor incomensurável, apenas aliviada pela promessa que ela me fez.
— Irei vê-la com regularidade e nunca faltarei às suas estreias. Eu lhe prometo, Caitlyn Cat. E você, prometa-me dar tudo de si para chegar ao topo. Realize seu sonho e mostre ao mundo quem é a verdadeira Caitlyn.
— Vou sentir sua falta, vovó.
Enquanto eu chorava no carro que me levava ao meu destino, sentia-me incapaz de dizer uma única palavra de agradecimento aos meus pais que haviam deixado, no entanto, tudo por mim: sua família, seus amigos, sua casa. Ainda hoje, a lembrança da despedida de minha avó me provoca, ao mesmo tempo, uma pontada no coração e um sorriso. Porque ela manteve sua promessa, e eu mantive a minha.
Para muitos, a entrada na escola americana de balé é um mito, algo que esperamos, com o qual sonhamos, mas que nunca alcançamos; uma vida excepcional, reservada à elite e a poucos privilegiados. Para minha sorte, Mason me preparou bem e tudo acabou sendo apenas uma formalidade. Com apenas 10 anos, deslumbrei os mais velhos pelo meu desempenho e pelas emoções que transmito através dos meus passos. Encadeei piqués, arabescos e pas de chats sem erros e obtive uma bolsa de estudos completa para integrar as aulas da semana seguinte com as adolescentes. Mais uma discrepância em relação às demais. A diferença de idade significava que não tínhamos a mesma vida e os mesmos objetivos, apesar de uma paixão em comum, continuando a me manter isolada. As meninas de quinze anos floresciam em seus corpos em desabrochamento e seus olhos buscavam os dos rapazes, enquanto eu passava meus dias na frente do espelho com o único objetivo de alcançar a perfeição em minha prática. As coisas não mudaram de fato uma vez que a inveja em relação ao meu progresso manteve o fenômeno. Minha fase adolescente tem muito pouco em comum com a dos demais. Flertei um pouco, mais para fazer como as outras do que por um desejo real, e não foi um grande sucesso. Uma barreira invisível se colocava entre aqueles rapazes em busca de experiência e eu: a total falta de entendimento. Nunca entendi o que eles esperavam de mim e vice-versa. Por outro lado, eu mesma não sabia o que esperava deles. Ser menos solitária, sem dúvida. A experiência não foi desagradável, apenas não senti nenhum apego particular pelos meus namorados e, dada a facilidade que tiveram em me deixar, acho que foi mútuo. Por conseguinte, acabou por ser inconclusivo e finalmente decidi ficar sozinha, em vez de ser mal compreendida.
E aqui estou eu, doze anos depois, pronta para subir ao palco para o ensaio geral de “A Bela Adormecida”. Incorporar a princesa Aurora é o sonho de uma garotinha e amanhã, durante a estreia, minha avó estará presente na primeira fila. Ela ficará comigo por alguns dias antes de retornar à sua propriedade e, dessa vez, nos será permitido matar a saudade, apagando a falta sentida durante esses poucos meses de separação. Meus pais também estarão lá, mas muitos ressentimentos não expressos bloqueiam nosso relacionamento. Meu investimento na escola de balé e minha bolsa de estudos me permitiram alçar voo de imediato e, ao mesmo tempo, alcançar minha independência. Muito rapidamente, as acusações surgiram e minha condição de filha ingrata vem crescendo. Eles me culpam por tê-los feito abandonar a Flórida e por nunca lhes dedicar tempo, nem mesmo lhes concedendo a consideração que esperavam como pais. Quando eu era mais jovem, respondia-lhes que havia pedido para que me deixassem vir para Nova York, mas que nunca havia lhes pedido que me seguissem até aqui. Como se pais dignos desse nome pudessem mandar uma criança de dez anos para um lugar a milhares de quilômetros de distância, sozinha! As coisas se agravaram rapidamente e agora é tarde demais para remediá-las, e o ciúme do relacionamento excepcional que tenho com minha avó tomou proporções cataclísmicas. No fundo, eu lhes agradeço por me terem oferecido tanto, mas sou incapaz de lhes expressar minha gratidão e é tarde demais para que entendam. De repente, não sou nada além de uma decepção para eles, apesar do meu incrível sucesso, e eles se ressentem da falta de um segundo filho que lhes daria mais do que eu.
Minha felicidade com minha fama seria total, admito, se o mundo da dança, mesmo não sendo Hollywood, com suas estrelas de cinema, não fosse acompanhado pelas inconveniências da promoção. Minha foto está aparecendo em Nova York há semanas para anunciar o espetáculo que acontecerá no famoso Lincoln Center e, desde então, não posso mais sair sem ser reconhecida, sem dar autógrafos, e, o mais preocupante, sem receber cartas levemente assustadoras. Tento ignorar, mas a recorrência dessas cartas começa a minar meu estado de espírito. No entanto, não tenho tempo para pensar nisso.
— Caitlyn, é sua vez. Seu solo dentro da floresta.
Aqui vamos nós. Grand jeté para me localizar no centro do palco, cabriola cruzada, pas de bourré, picadeiro e, depois, fouetté. Na dança clássica, tudo é uma questão de ritmo, precisão, delicadeza e músculo. Mantenho um corpo esbelto, com esforço mínimo, o que me valeu a inveja de muitos bailarinos em dieta rigorosa, e isso me permite estar em total harmonia com a música que me transporta para outro mundo, um mundo límpido, no qual evoluo sem obstáculos. Eu evoluí bastante. Por mais que tente fechar a mente aos pensamentos parasitas que me dominam, não consigo colocar muros entre os meus sentimentos e a minha expressão artística, eles sempre foram intimamente ligados. Eu sei, antes mesmo de dar meu último salto, que eu não estava à altura. Sinto isso dentro de mim e os rostos das outras dançarinas da companhia confirmam. Elas parecem muito felizes em me ver falhar. O mundo da dança é um mundo de tubarões, tal como a Wall Street. Elas aguardam a primeira oportunidade que lhes permitirá tomar o meu lugar e chegar ao centro do palco. Agatha é a mais cruel de todas. Ela é minha concorrente mais feroz, a mais impiedosa. Todos os pretextos são bons para me colocar em uma situação difícil. Está furiosa comigo desde que entrei para o American Ballet. Antes da minha chegada, ela era a maior esperança da companhia. Apareci com meu ar inocente e minha ignorância sobre a competição, e ela se tornou a segunda, minha substituta em caso de acidente, exceto que nunca há acidentes. Agatha é oito anos mais velha que eu. Vive seus últimos anos no palco e se torna cada vez mais agressiva ao longo do tempo. Suponho que queria terminar sua carreira em um momento de glória e que sabe que sou a causa desse fracasso. Estou no auge da minha vida quando ela tem, no máximo, apenas dez anos de dança à sua frente. O que quer que ela faça, eu sempre estarei lá, roubando-lhe o lugar que ela considera seu por direito, e todo o seu dinheiro não adiantará de nada. Agatha é descendente de uma grande família de aristocratas, que possui muitas propriedades nos bairros mais sofisticados de Manhattan. Há muito que acreditava que seu nome prestigiado sempre lhe abriria todas as portas, mesmo que isso implicasse em jogar alguns dólares sobre a mesa para destrancar as fechaduras mais resistentes. Minha vinda acabou com suas ilusões e ela não aceita. Chegou ao ponto de me oferecer uma grande quantia em dinheiro para me retirar da cena. Obviamente, aceitou muito mal minha recusa. Não tenho interesse em dinheiro. Qual é a utilidade de alguém ser rico se está infeliz? Sem dançar, sinto como se estivesse trancada em meu próprio corpo. Não consigo viver sem ela. Minha rival não entendeu e nunca entenderá. Para ela, só a glória é importante. Glória e reconhecimento. Como se o balé fosse um mundo glamoroso, cheio de brilho! Acima de tudo, é um mundo de suor e trabalho duro.
— Tsc, tsc, Caitlyn. Parece que você não está em sua melhor forma. Posso substituí-la, se sua cabeça estiver em outro lugar. O público não perderá nada com a mudança, posso lhe garantir, e precisamos pensar nos nossos fãs primeiro.
Como se eu fosse aceitar. Prefiro passar por ela sem sequer lhe lançar um olhar. O que a deixa mais furiosa mais do que um confronto verbal é quando você a ignora, e isso eu entendi muito rapidamente.
— Você não passa de uma vadia. O primeiro papel pertence a mim por direito e eu o terei.
Nos sonhos dela, certamente. Na realidade, ocupo o lugar e não pretendo sair. Está na hora de ela aceitar.
Capítulo 2
Caitlyn
O dia da estreia enfim chegou. Apesar do aumento no número de cartas desagradáveis, consegui recuperar o controle, esvaziando ao máximo a minha mente e deixando sair, através da dança, todas as emoções remanescentes em mim. Não foi sem dificuldade, já que as cartas se tornaram cada vez mais ameaçadoras à medida que o espetáculo se aproximava e a última, datada do mesmo dia, não chegou ao teatro como todas as outras, mas diretamente à minha casa, ao meu santuário, meu refúgio, que então me pareceu menos seguro e reconfortante. Então, o coreógrafo achou minha expressão um pouco agressiva durante nosso último ensaio e pediu-me para suavizar as feições o máximo possível com maquiagem naquela noite; porém, no geral, ele está feliz com meu desempenho.
Minha avó está lá, eu sei, posso sentir o olhar dela sobre mim. Ela não teve tempo de ir me ver no camarim antes do início da apresentação, mas sempre sei quando ela está lá. Sinto-me imediatamente mais calma, que é algo de que preciso muito. Como todas as pessoas autistas, o ruído e as multidões são fatores difíceis de suportar. Felizmente, a sala está mergulhada na escuridão e o público, em silêncio, concentrado na música e nos dançarinos que evoluem com suavidade no palco, contando uma das histórias infantis mais famosas. Faço a minha entrada com algumas piruetas na ponta dos pés. Fecho os olhos e deixo a música me transportar. Sinto os sons vibrando, da ponta dos meus pés às extremidades do meu cabelo, ondulando no ritmo, ocupando todo o espaço disponível no palco. Meu coração tamborila ao som das notas dos violinos, minha respiração acelera enquanto os passos se sucedem. Sinto tudo nas profundezas do meu ser: o exílio de Aurora, seu isolamento no meio da floresta, a alegria de reencontrar sua família, a dor de perdê-los assim que retorna e a esperança de finalmente ser amada. Este balé foi feito para mim. De alguma forma, ele reconstitui minha própria vida, desde o instante em que deixei a Flórida até o momento em que encontrei meu lugar no palco. Não há nenhum príncipe encantado para mim, mas um grande amor mesmo assim: o da dança. Essa paixão que enche meu coração de alegria. O tempo escoa tão rapidamente no palco… Em um ritmo alucinante, que não consigo perceber. Muito rápido, rápido demais, o balé acabou. A cortina se fecha sob os aplausos ensurdecedores dos espectadores. Todo esse barulho deixa meus ombros tensos. Quem me dera poder fugir da multidão, mas não posso. Sou a primeira dançarina do espetáculo e os espectadores estão ali principalmente para me ver. Consegui fazer com que as saudações não se prolongassem, mas esse foi o único compromisso que me foi concedido. Então, cerro os dentes enquanto toda a companhia se junta a mim no palco e todos cumprimentamos o público assim que a cortina de veludo vermelho sobe. A sala agora está iluminada, permitindo-me perceber a extensão do mundo que se deslocou, e prefiro não me deter nesta visão que me deixa em pânico. Procuro minha avó com os olhos. Ela está em seu lugar habitual, na galeria à esquerda do palco, e me concentro em seu rosto. Suas feições não mudaram desde sua última visita, há dez meses. Parecia que o tempo não exercia controle sobre ela. Seus cabelos prateados estão presos em um coque sofisticado e sua roupa realça sua figura esbelta. Posso estar longe, mas consigo ver o orgulho em seus olhos e a insinuação de sorriso. Vejo, pelo canto dos olhos, os meus pais ao lado dela, mas, como toda vez em que eles me olham, seus rostos estão inexpressivos. Nem alegria nem tristeza. Parece que meu desempenho e meu sucesso os deixam indiferentes. Pergunto-me por que eles continuam vindo ver minhas estreias, já que nunca parecem gostar de apresentações de balé. Felizmente, a cortina se fecha e posso apagar meu sorriso de fachada, que cria cãibras em meus ossos malares. A companhia inteira pula de alegria e se beija, tomando cuidado para me evitar. Todos sabem que eu não gosto de toques. Apenas alguns dançarinos prestam atenção em mim e fazem um sinal com a cabeça para me parabenizar.
— Você é patética. Você se acha tão melhor do que todos que nem consegue se juntar à nossa alegria.
Parece que Agatha não gastou toda a sua energia no palco. Está cheia de fel quando se dirige a mim. Prefiro ignorá-la e lhe virar as costas, para ir até o meu camarim pessoal, mas minha rival decidiu o contrário. Fica parada na minha frente, bloqueando o meu caminho, e levanta a voz para que todos os olhos se voltem para nós.
— Veja bem, você não tem nada do que se orgulhar. Seu desempenho não foi tão bom. Limitado e medíocre. Está preocupada, talvez? Devia se retirar do espetáculo antes de estragá-lo definitivamente.
— Deixe-a em paz, Agatha. Caitlyn dançou muito bem esta noite. Foi fabulosa, como sempre.
Alex… Meu anjo da guarda, contra tudo e contra todos. Nossa história foi curta e pouco interessante, mas ele provou ser para mim um amigo muito melhor do que um amante. Ele é o único que se adaptou ao meu caráter volátil e minha óbvia falta de comunicação. Rapidamente, percebeu que eu não fazia por mal, aquele era o meu jeito. Ele é o defensor dos oprimidos e das causas justas. Acredito que apenas eu constituo a maior parte de seu trabalho como cavaleiro andante, embora não seja a única que desfruta de seu apoio incondicional. Sem dúvida, sou reservada, mas Agatha não ama ninguém e alguns de nós sentem isso. Aproveito a intervenção de Alex para me esgueirar discretamente pelo corredor, enquanto Agatha expele sua bile aos gritos para qualquer um que queira ouvi-la.
Meus colegas estão convencidos de que não tenho caráter. Se tivessem feito algum esforço para me conhecer, teriam percebido a raiva borbulhando em minhas veias e transparecendo em meus olhos. Quando era mais jovem, o menor aborrecimento provocava uma violenta explosão de raiva durante a qual batia e quebrava tudo o que estava em minhas mãos. Então, comecei a dançar e minhas convulsões se espaçaram até desaparecerem. A dança tem sido minha escapatória e não quero voltar atrás. Prefiro parecer aborrecida e insípida do que louca. Quando era pequena, o primeiro médico que meus pais consultaram os acusou de maus-tratos. Dos quarenta e dois sinais de abuso infantil, recebi mais da metade deles, variando de lesões físicas a distúrbios emocionais e comportamentais. Felizmente, a assistente social que foi enviada à minha família para investigação havia sido treinada em transtornos autistas, impedindo-me de ser colocada em um lar adotivo que só teria piorado meu estado psicológico. A ideia de expressar minhas emoções por meio de uma atividade veio dela. Uma bênção. Tornei-me menos violenta, daí a diminuição significativa de hematomas e feridas em meu corpo, e minha concentração na escola tornou-se mais fácil, pois eu conseguia relaxar no final da tarde. Apenas as fugas persistiram. Nunca fui para longe. Refugiava-me com minha avó enquanto esperava a tempestade passar. Foi só pensar nela para ver sua figura refletida no espelho. Ela é a única pessoa autorizada a entrar no meu camarim.
— Boa noite, Caitlyn Cat.
Ela sempre me fará sorrir. Apesar dos anos que passam, ela ainda me chama como quando eu era pequena. Larguei o algodão e meu demaquilante para poder abraçá-la. Pronto. Finalmente estou em casa. É suficiente que ela esteja ao meu lado, não importa onde, para sentir-me à vontade.
— Boa noite, vovó.
— Deixe-me olhá-la, minha Cat.
Ela se afasta um pouco e eu prontamente me submeto à sua inspeção. Nada escapa dela, e, certamente, não as olheiras que agora são visíveis sem a maquiagem que as camuflava.
— Você está linda, minha querida. Só que trabalha muito e isso fica claro. Você precisa descansar.
— Pensarei a respeito, vovó.
Ela levanta uma sobrancelha, cética. Ela me conhece muito bem.
— Tudo bem. Farei um esforço durante a sua estadia.
— Ótimo. Pretendo passar o máximo de tempo possível em sua companhia. Depois de tanto tempo, tenho certeza que temos muito o que conversar.
Duvido, mas não importa. Tudo o que quero é estar com ela, mesmo se não trocássemos uma palavra sequer. E, então, se não tenho nada a dizer, talvez ela tenha. Sei que ela ama sua nova casa no meio do nada. E seu vizinho. Principalmente seu vizinho. Ela fala comigo sobre ele toda vez que me liga. Acho que ela sonha, secretamente ou não, em me arrumar um encontro com ele. Minha avó ainda tem sonhos para mim. Ela é adorável.
— Você está pronta para ir, Caitlyn? Seus pais estão nos esperando para irmos ao restaurante.
Ah, sim. A famosa refeição em família! Aquela que só acontece na noite das minhas estreias e que agora é o único contato que tenho com meus pais. No entanto, apesar de nossa total falta de contato no resto do ano, não tenho absolutamente nada a lhes dizer, ou melhor, não consigo conversar com eles, e, portanto, este jantar logo se transforma em uma refeição silenciosa e desconfortável, onde minha avó luta por duas horas para recriar laços de família que nunca existiram de verdade. Estou tão encantada com essa ideia quanto com a possibilidade de deixar o meu lugar como dançarina principal para Agatha.