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Escada E Cristal
Quer dizer, todos temos a nossa individualidade, mas existem crianças que maltratam os animais e este é um primeiro sinal preocupante. Muitos seriais killer desde criança maltratavam os animais, e era certamente o caso da criança que me perseguia naquele lugar imundo, aquela barraca lenhosa cheia de cubículos.
Percebia pela sua violência, pelo modo com o qual quebrava as coisas, que não tinha recebido amor, mas sentia mesmo que a semente do mal estava enraizado nela: tinha sido abusado e agora se divertia abusando. Era o mal que se expandia como uma doença que não deixava salvação, que te perseguia e que acabaria por destruir-te lentamente somente tocando-te. Era atormentador e sempre presente. Não podia continuar a fugir, tinha que reagir, todavia não sentia ainda as pernas suficientemente fortes, embora que, antes ou depois, uma decisão tinha que ser tomada.
A decisão era vital, não podia deixar que a criança me destruísse, mas tinha mesmo de fazer parar a criança que continuava a resvalar-me e a ressaltar contra nas paredes.
Tinha que esboçar um plano, uma estratégia para tornar inofensivo o monstro e salvá-la.
Entretanto me causavam mesmo dor nos ombros; era uma minha típica reacção ao stress.
A tensão nervosa, por exemplo, antes dos exames na universidade, levava-me a contrair os músculos dos ombros com resultados péssimos para as omoplatas e para os membros cervicais.
Todavia tinha que fazer algo, devia horrivelmente fazer alguma coisa.
Afastei-me, de forma que a criança não esbarrasse contra a parede mas contra a minha pessoa; esperava que algum tempo depois com a inércia teria cessado. As cordas rasgadas que a agitavam estavam desarticuladas, em parte arranhadas e não íntegras; todavia eram resistentes. Tentei cortá-las com um canivete apanhado na minha sacola, mas ela tendia escapar-me da mão e era muito viscoso por causa do óleo espesso e impenetrável. Uma substancia oleosa semelhante ao betume.
Estava escuro e aquele negócio causava-me fadiga. Sentia-me observada pela criança que estava a perseguir-me, sentia os calafrios nas costas e temia a morte em cada momento, em cada minha única respiração… a criança era a minha consciência e não me dava paz.
A consciência é aquela coisa que te mantém acordado de noite e te faz observar durante muito tempo um tecto sempre igual.
Faz-te percorrer o passado e o futuro num instante, vês toda a vida num instante e depois deves decidir, tens de decidir segundo a consciência.
E decidido: teria tentado de salvar a criança. Eu podia morrer, podia ser despedaçada mas devia superar o teste; devia mudar e ser mais forte.
A força aprende-se mesmo criando o caminho e eu queria que fosse assim para a minha vida, não queria mais fugir se não quando tivesse sido extremamente necessário, algo em mim estava a mudar e no fim, talvez, era justo assim. Era um desejo de paz e justiça que paradoxalmente forçava-me a lutar, um misto de bondade e dignidade que está enraizado nos bons guerreiros das histórias que me narravam desde criança.
Era a não-aceitação do mal, nunca e sem nenhum compromisso, porque de compromissos por demasiada bondade tinha possuído bastantes e tinha recorrido à fuga, à humilhação e a um depressivo sentimento de baixa auto-estima. A depressão não a queria mais, queria combatê-la. Queria salvar a criança que baloiçava, porque naquele pêndulo de incertezas via eu mesma, a balançar entre uma decisão e outra, confusa e insegura.
Devia agir instintivamente quando a criança teria chegado no meio percurso. Teria tentado com o canivete com o qual cortava a carne seca ou então ramos das plantas de baga onde andava muito ávida. Era uma pequena navalha e estava suficientemente em mau estado… portanto tinha que agir apressadamente e ser precisa, porque tinha um outro monstro não distante de mim.
Atirei-me de cabeça baixa, pensando que podia ser minha filha e que tinha o dever moral de salvá-la, ou pelo menos de tentar. A faca cortou rapidamente a primeira parte da corda pois que macilenta, mas depois parou.
Mais tentava e menos conseguia cortar.
Sentia que estivesse a rir nas minhas costas e sentia um gelo dentro de mim, um calafrio que me percorria a coluna deixando-me tremer os braços. Os meus ombros tremiam mas não a minha vontade, e percebi que a obscura criança era a criança que me perseguia e que naquele momento apresentava-se diante de mim, os olhos verdes e terríveis.
Tinha escondido na corda uns pequenos alfinetes.
Estando furioso comecei a tirá-los, procurando de equilibrar a rotação com o meu peso. Estava desesperada, mas tentei e tentei de novo, furando-me as mãos e praguejando pelas picadas.
E a corda cedeu. A criança caiu no chão mas pelo menos podia dizer que o seu eterno baloiçar tinha cessado.
Acabado de ver aqueles horríveis olhos verdes ficara confusa, mas ganhei força e comecei a gritar contra o monstro, não tinha outra coisa que a minha voz. Lhe disse, mostrando a criança que jazia no chão: «eis o que fizeste, não me resta mais nada, NADA! Tiraste tudo de mim porque sei que esta criança teria sido ligada a mim num futuro. Agora acaba comigo se te convém… faz aquilo que queres, o que queres ainda, o meu sangue?»
Desafiava-o como uma doida, mas ele tinha mudado. Apertou-me a mão e me disse que tinha feito a coisa certa, que tinha superado o teste e que estava tornando-me mais forte.
A força a tinha temperado dentro de mim forjando-a com a paciência, como os ferreiros quando batem o ferro e o moldam até obter uma espada afiadíssima e objectos de raro valor. Mas também quem forja, espreme e dedica-se pode falhar, e é talvez esta a origem de toda a insegurança que nos obrigam a fugir ou a atacar; a render-se ou a vencer.
Desta vez vencido, mas a viagem devia continuar e outros desafios se teriam apresentado diante de mim. Dum lado não via a hora de bater-se com eles, mas do outro sentia outra vez o calafrio gélido do medo para com o desconhecido. Apesar disto prossegui com as minhas botas altas consumidas para outros desafios e outros territórios.
Os territórios atormentados típicos duma tundra nórdica pareciam estar nas costas, com o seu denso cheiro de bétula e os altos pinheiro-alvar acossados pela neve do inverno. As sempre-verdes, que antes estavam todos ao meu redor, dispersaram-se para dar espaço a um misterioso labirinto. Encontrei-me de repente próximo das emaranhadas ruínas que carregavam muitos anos tanto que eram as camadas de líquenes que as cobriam. Estavam em más condições mas desenhavam ainda os seus contornos. Se queria embrulhar-me no labirinto, devia seguir a direcção daquelas ruínas; pacientemente, com afinco e com espírito de sacrifício, devia curvar a minha vontade àquela do destino. O destino não devia ter sido muito generoso até agora visto a sequência dos desafios que tinham endurecido o meu espírito e a minha pele, fortalecendo o meu físico mas cansando-me terrivelmente.
A fadiga era uma sensação que bem conhecia, uma amiga e uma companheira de todos os dias. Era como uma mulher que não mente: linda e terrível ao mesmo tempo. Não tanto quanto sedutoras eram as escritas que encontrava nas paredes, escritas terríveis e formulas magicas que pareciam traçados com restos humanos e sangue.
Controlando as escritas assustavam cada vez mais: diziam para não entrar e para não aventurar-me, para não experimentar aquele caminho terrível; diziam para largar os próprios desejos porque não se realizariam, porque simplesmente estaríamos mortos.
Rastos humanos, crânios e corpos martirizados não muito distantes de mim. Sentia-me observada e vigiada. Tudo, precisamente tudo poderia acontecer naquele momento. Sozinha atravessava aquele novo território hostil feito de arreia, pequenos espaços pavimentados e musgo que crescia entre fissuras das velhas ruínas.
Naquelas ruínas havia crânios abandonados, alguns com os cabelos ainda intricados, cabelos já amarelecidos pelo tempo.
De repente, um rangido suspeito e depois um estrondo. Diante de mim apareceu uma porta giratória, que empurrei.
E o que encontrei deixou-me sem palavras.
Era eu mesma. Era eu mesma, mas num certo modo diferente.
Era eu mesma, era eu mesma que via e não podia crer naquilo. Finalmente teria tido alguém com quem falar e comparar-me. Poderia dizer-me donde vinha, o que fazia.
Ela assemelhava-me em tudo, apenas estava vestida mais elegantemente. Tinha encarado muitas peripécias, como eu, mas não quanto perigosas. Encontrando-se num lindo jardim, numa dimensão distante, tinha caído e tinha topado na porta dimensional que tinha aberto. Tinha passado desta forma de um mundo para o outro, achando-me confusa e sob choque pela novidade.
Agora éramos dois naquele mundo paralelo, éramos duas heroínas na noite, no gelo daquelas congelantes ruínas. Éramos dois mas também sempre duas gémeas, duas pequenas almas na noite, duas velas acesas que podiam ajudar-se uma e a outra ou decidir para morrer competindo.
A competição feminina era algo mortífera, que tinha levado as mulheres a pegar-se pelos cabelos por amor de um traidor ou a perder o trabalho pelo qual não tinha conseguido granjear a simpatia do chefe; a competição era potente e mortífera como ampola de veneno. Não podia que temê-la.
Avaliava atentamente as atitudes do meu clone, da minha gémea, mas ela demonstrou-se sempre muito afável e compreensiva. Seguia-me sempre e tinha uma atitude gentil e aberto no que me diz respeito. Enquanto nos aventurávamos cada vez mais para o interior das ruínas, a nossa sintonia crescia.
Aquele breve instante de tranquilidade, aquele breve instante em que dei-me conta que não estava mais sozinha, que podia ter um futuro, portanto fui logo assolado.
OS MONSTROS DAS CAVERNAS
Era monstruoso, barulhento e nutria-se de medo. Tinha o corpo avermelhado com as veias em vista pela queimadura total da sua pele. Era altíssimo, cerca de quatro ou cinco metros, com pés grandíssimos e robustos que se moviam fazendo o ruído de uma rocha que se esmigalha no chão. Tinha a boca repleta de dentes para morder e gostava da carne humana.
Tinha vivido ali durante séculos, e escondido esperava jovens e idosos no centro das ruínas, no ponto onde faziam-se mais articuladas; tinha vivido nas ruínas desde quando elas eram um castelo fantástico. Era o filho não querido de uma violência e tinha sido maldito desde o primeiro momento. Era o fruto de um estupro bem combinado com sete maldições antigas. Tinha os olhos amarelos e luzentes e podia ver no escuro, pressentir no escuro.
Tinha feito um pacto com uma outra criatura diabólica: um monstro que odiava a inocência.
Os seus nomes eram Danação, o resultado das maldições, e Vingança, aqueles que odiava a inocência.
Vingança era um assassino silencioso, refinado, inteligente e psicopático que, vendo-se morrendo na fogueira, tinha feito um pacto com Danação antes de ser queimado vivo. Danação tinha estado em condições de pegar de novo os despojos de Vingança e trazê-los de novo neste mundo. Este último, depois da queimadura na fogueira, tinha voltado com uma sede de sangue sempre maior.
Vingança vestia uma camisola esfarrapada sobre a qual se podia ler ainda o seu nome: estava escrito com giz branco e contornado com o vermelho das suas vítimas.
Os dois assassinos logo sentiram a presença de dois humanos e esconderam-se na obscuridade sem proferir uma palavra, sem um único momento de hesitação. Sabiam do nosso medo, estavam em condições de farejá-lo, e sentiam no ar todo o cheiro, insegurança, já sabiam que havia ali duas boas almas vagantes que tinham perdido a orientação.
Eu com a outra (eu mesma) estávamos felizes de estarmos juntos mas próprio aquela sensação nos traiu, no sentido que inicialmente tínhamos explorado com receio as antigas ruínas com as ameias arruinadas e decadentes, mas depois, talvez, tínhamo-nos deixado possuir pelo entusiasmo e tínhamos avançado, mas sem um mapa. Muitas vezes nos tínhamos encontrado nos becos cegos, e no fim, depois de ter girado em círculo mais vezes, nos tínhamos apercebido de termo-nos perdido.
Não sabendo mais como recuar tínhamos que procurar uma saída. As ruínas estavam cada vez menos danificadas e mais compactas, como se estivéssemos entrando numa ala relativamente mais nova. As paredes eram espessas, cinzentas e húmidas, a água filtrada a partir do tecto criando uns charcos no chão.
Dentro daquele labirinto havia grandes compartimentos meio vazias, cinzentos, húmidos e obscuros. As vezes a condensação depositava-se na parede, outras formava-se uma neblina distante de nós. Tornados curiosos, procurávamos de perceber o que estivesse a originar a névoa e o porquê nos sentíamos terrivelmente vigiados.
Naquele labirinto misterioso dois sentimentos opostos impregnavam as nossas almas: medo e vontade de explorar.
A vontade de exploração de novos territórios é um impulso que se sente especialmente durante a puberdade, e de qualquer forma éramos de novo umas adolescentes, contra a nossa vontade lutando mutuamente com novas explorações.
As nossas emoções eram opostas mas sabíamos que, se bem que o perigo fosse iminente, éramos seres humanos e devíamos comer. Eram dias de escassez mas tínhamos ainda umas reservas de carne seca porque quando a outra (eu) estava fora das ruínas, tinha caçado e colhido bagas.
Recolhemo-nos num cantinho para mastigar aquela sóbria refeição que aos meus olhos podia ser que saborosa. Os nossos dentes funcionavam como laminas que cortam tudo e a nossa comida desapareceu muito rapidamente. Limpamos a zona e continuamos a nossa peregrinação esperançosa em não ter maus encontros. Durante a viagem tínhamos recomeçado a ver imagens horríveis desenhadas, escritas que nos forçavam a ir embora, a fugir, mas para onde podíamos fugir?
Onde é que podíamos encontrar um refugio? Como é que podíamos sair daquele labirinto?
Prosseguimos e felizmente encontramos armas e projécteis; apanhamo-los pensando que no futuro poderiam ser-nos útil. Descobrimos também uma espécie de acampamento destruído. Parecia que tivesse sido atacado e que os cadáveres tivessem sido arrastados dali: viam-se claramente vestígios de sangue provocadas pelo arrastamento dos corpos, todavia não encontramos nenhuma das vítimas.
Recolhemos todas as armas possíveis e também o pequeno kit do pronto-socorro: não sabia o que nos esperava e por isso queríamos nos preparar. Se quisessem matar estas duas mulheres sós, pois bem, deveriam esforçar-se.
Estávamos armadas e, esperando de ajudar aqueles que tinham sido atacados, avançamos seguindo os rastos de sangue. Todavia, logo começamos a temer o pior para os coitados mal-aventurados: deviam ter perdido muito sangue e o seu fim ou já tinha acontecido ou então estava muito próximo.
Seguimos os rastos de sangue ao longo da sala grande, depois passamos para um lugar mais estreito e obscuro. Apenas algumas chamas iluminavam o caminho, mas nós já tínhamos decidido o nosso percurso e nos demos força uma para a outra.
A partir do estreito corredor apresentava-se uma passagem mais ampla com tectos altíssimos que continham no centro uma outra sala enorme amuralhada.
A princípio não vimos a entrada, e foi esta a nossa sorte porque, sentindo o nosso cheiro, os monstros saíram para procurar-nos sem saber exactamente onde estivéssemos, e nós pudemos nos esconder atrás de uma rocha.
Eram horríveis e sujos, manchados de sangue.
Simplesmente congelantes. Estavam a brigar, o percebia porque lançavam-se estranhos raios e bolinhas de fogo que percutiam os seus corpos; se fossem atingidos, queixavam-se com gritos de barítono e terríveis.
Não eram gritos compreensíveis para nós, mas supunha que tivessem começado a brigar e se contrariavam provavelmente porque era bastante tempo que estavam sós e se enfadavam.
A luta continuava e começaram a não farejar mais o ar, mas apenas a brigar entre eles sempre de forma mais apaixonada. Talvez tinham perdido o interesse por nós. Estavam a magoar-se um ao outro: era o momento de atacar e de procurar os eventuais sobreviventes. Poderíamos ainda salvá-los ou tentar de fazê-lo, pensava esperançosa. Todavia não havia muitas esperanças, mas se tivessem sido atacados recentemente, talvez o kit do pronto-socorro poderia ajudar-nos.
Resolvemos portanto de apanhar os monstros de costas e de disparar apontando às suas feridas; para enfraquecê-los, se não matá-los.
Imaginava claramente o nosso empenho, o nosso avançar silencioso.
Começamos a disparar um segundo antes que se dessem conta de nós. As nossas balas, não obstante as suas dimensões colossais, eram dolorosas. Lhes carregamos em cima deles tudo o que pudemos, mas depois tudo acabou mal.
Vi o fim, vi-o nos olhos escuros da mulher que tinha sido mortalmente ferida e era exactamente igual a mim; podia ver com os seus olhos e perceber a vida que a estava abandonando lentamente. Contudo devia ir embora. Ela percebeu que devia fugir e nos seus olhos vi o perdão e a compreensão. A minha fuga percebida, justificada.
Nos dias seguintes teria sonhado e sentido toda a dor daquela criatura proveniente de muito longe que jamais teria revisto, a minha imagem proveniente duma dimensão diferente. Teria sentido o gélido impacto gerado pelo remoinho escaldante que me chupava, teria reparado em cima sabendo que não havia mais esperança neste mundo.
Apesar de tudo os monstros estavam ainda vivos e podiam fazer-me mal: devia deixá-la sozinha a minha companheira da aventura mal encontrada.
Para ensaiar a morte deles ela deixou-se pegar fogo, deixando saltar pelo ar os projécteis que tinham restado. O que criou uma enorme dor aos monstros que pareciam estar a gritar, gemer e rugir de raiva, frustração e dor. Os tinha visto de joelhos com o canto do olho e dentro de mim esperei para ser libertado.
Atravessei a larga passagem e encontrei-me na sala onde Danação e Vingança torturavam os prisioneiros e os sacrificavam em algumas divindades infernais.
Vários corpos tinham sido massacrados e enforcados ao contrário, de forma que o sangue gotejasse e com eles a vida. Era horrível e dramático, uma cena pior que tivesse alguma vez visto.
Tinha a pele de galinha e as lágrimas nos olhos; um terror jamais conhecido lambia o meu corpo. Tremia a cada mínimo perigo e a cada jogo de luz das chamas um arrepio percorria-me as costas. Repetia para mim que tinha o dever moral de assistir as pessoas em dificuldades, esta era a minha natureza e devia segui-la.
Tinha sentido como uma queixa num saco e procurei perceber do que se tratava. Todavia devia ser perigoso: podia ser um prisioneiro inocente ou então uma criatura como Danação e Vingança.
Segui as lamúrias. Provavelmente era a voz de um homem que pedia ajuda, mas não percebia o que estivesse a dizer ou quem invocasse. Abri o saco e saiu um homem lindíssimo. Tinha os olhos azuis-verdes, cabelos loiros e as típicas feições nórdicas que sempre deixaram enlouquecer; os braços eram poderosos e pareciam ter sido criados para proteger-me.
Pouco tempo depois sorriu para mim, grato, e tentou falar comigo, mas não percebia o que dizia. Num instante, pois, compreendemos que devíamos fugir de novo porque Vingança e Danação gritavam e desejavam a sua desforra. Estavam muito próximos de nós.
Fugimos duma só vez.
No fundo da sala, a dado passo ele indicou-me um alçapão. Antes, contudo, deveria abrir a tal e depois a grade, por conseguinte eu, que estava armada, eu devia proteger e disparar numerosas balas contra os dois monstros que estavam feridos mais ainda terrivelmente activos. Enfim podia vê-los: eram duas criaturas diabólicas. Começaram a lançar bólides amarelos para a minha direcção e eu protegi-me como podia, continuando a disparar.
Estava tão concentrada que aquele homem lindíssimo foi obrigado a pegar-me pelo pescoço para virar-me e deixar-me entrar no alçapão, que fechamos apressadamente à nossa trás, e assim como a grelha.
Continuamos às cegas naquele lugar obscuro. A luz era fraca mas não estava sozinha. Seja eu como ele, tínhamos nos olhos e no coração uma jornada entre as mais tristes e dolorosas que os humanos pudessem ter conhecido; éramos pequenos, fracos e assustados.
Apesar do nosso medo e os gritos enlouquecidos dos dois monstros, na luz fraca o homem admirável conseguiu encontrar uma espada.
Percebi que o meu companheiro da aventura sabia empunhá-la e devia também estar treinado para usá-la; o que justificava os grandes e atraentes braços robustos.
Prosseguindo com a espada, encontrou também um homem morto dentro de uma couraça e fez-me perceber que devia ajudá-lo a remover o cadáver de forma que pudesse usá-la; felizmente não lhe ficava nem muito larga nem muito apertada. Era rápido e ágil mesmo com ela vestida.
Avançamos através dos estreitos túneis subterrâneos que eram quentes e pouco iluminados mas que davam um sentimento de tranquilidade. Avançamos durante algum tempo. Não havia perigos. Já tinha percebido que ele sabia usar as armas, que era inteligente e esforçava para comunicar-se; devia ter sido um soldado. Parecia gentil nos gestos e nos movimentos, talvez porque o tinha salvado. Estava sempre disposto para ajudar-me e parecia estar a procura de comida como a procurava eu também.
Naquele caso fomos sortudos: as ruínas tinham os seus canais de escoamento e nós estávamos num deles.
A água demonstrou-se de boa qualidade, e eu acrescentei a erva medicinal que a transformava em limpa. Tínhamos também encontrado umas carcaças de animais. Ele era excelentíssimo para seccionar a carne, salpicava-a com sal para conservá-la por muito tempo.
Éramos um bom team: eu emotiva e sensível, orgulhosa lutadora armada, ele mais técnico e reflectido mas sempre, como eu, disposto ao auxílio recíproco. Éramos muito leais entre nós e durante o tempo passado nas ruínas tornamo-nos bons amigos, por aquilo que a barreira linguística nos permitia.
Tinha encontrado uns animais mortos, e graças à sua habilidade com qualquer coisa que assemelhasse a uma faca ou uma espada, obtemos capas confortáveis que de noite nos serviam como cobertores: podíamos desta forma nos escaldarmos.
Depois de vários dias de exploração e tentativas, nos encontramos numa descida que levava a uma abertura. Descemos, mas o caminho era rápido e escorregadio, e no princípio, ainda que não perdíamos o equilíbrio, continuávamos a acelerar. Era assustador mas enfim não podíamos recuar. Continuávamos a descer sem poder paralisar as nossas pernas que se moviam cada vez mais velozmente. Temíamos que não conseguiríamos mais parar. Não podíamos pegar nenhum corrimão nem assentar estavelmente as nossas botas, podíamos apenas orar que antes ou depois aquela maldição acabasse. Mas podia realmente acabar. Podíamos encontrar realmente um ponto de apoio?
Infelizmente, muito em breve descobrimos de termos caído numa armadilha e que, talvez, a mesma descida nos tinha atraído a si porque a tínhamos percorrido sem tão-pouco pensar em possíveis caminhos alternativos. Tínhamos sido iludidos pelo declive, atraídos como abelhas em flores lindas e perigosas, e agora não tínhamos uma outra possibilidade: podíamos apenas esperar para sobreviver.
Esperava com paciência preparando os seus esquemas… esperava como se espera a própria presa, esperava sempre tecendo o fio, e como esperava ele esperavam todos os seus amigos ali em volta. Tinham um instinto primordial para com as presas e mesmo eles tinham uma especial predilecção pelas carnes humanas. Os humanos, tão tenros e rosados, criaturas muitas vezes implumes mas tenros e macios; com apenas quatro membros, estranhamente bípedes, estranhamente lentos, com reflexos muito retardados.
Eram uma colónia de aranhas, Aracnídeos primordiais, peludos e orgulhosos das próprias capacidades de tecer e preparar as armadilhas. Não se davam o cuidado de esconder-se tanto assim, visto que as trincheiras onde viviam garantiam um bom esconderijo. Estes eram construídos com arreia escura, um simples buraco onde as aranhas teciam e se escondiam debaixo da terra. De noite a situação tornava-se inquietante.
Apareciam azulados e eram unidos, agressivos, enormes como metade do punho, rapidíssimos e orgulhosos pela sua velocidade.
AS ARANHAS DO FIM DO MUNDO