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–Ah, não! – Eu ouvi Rachel chorar.

Fomos para onde ela estava ao lado de uma das cabanas que desabara, ela estava olhando para o chão. Lá no mato vimos um crânio minúsculo, a julgar pelo tamanho, a criança deveria ter sido muito mais nova que Rachel quando morreu.

–Você não deveria estar vendo isso— disse Kaitlin, abraçando a filha.

Ela estava certa, mas o que poderíamos fazer? Não sabíamos com o que estávamos lidando quando chegamos à vila e também não acho que Cian sabia, pelo menos não em um nível consciente.

Cian e eu enterramos o pequeno crânio e colocamos uma pedra ao lado dele, como ela havia feito pelos outros.

Agora Kaitlin acrescentava outro graveto para crepitar sob o fogo, enquanto Cian ainda dormia com a cabeça em meu colo.

–Não sei o que aconteceu com eles, querida, pode ter sido algum tipo de doença ou um ataque – disse minha irmã em resposta à pergunta de Rachel sobre os moradores.


– Mas como Cian sobreviveu? – perguntou Rachel.

– Se foi há tanto tempo quanto imagino – eu disse —ela poderia ser apenas uma criança quando isso aconteceu.

– Sabe o que eu acho? – Kaitlin disse.

Eu olhei para ela.

– Não acredito que Cian tenha voltado lá em todos esses anos, caso contrário, os ossos estariam enterrados há muito tempo.

– Faz todo sentido. – eu disse —Ela parecia perdida e confusa até encontrar a rede da mãe, acho que foi assim que ela soube quem era: a rede e os arredores.

– Eu me pergunto o que ela fará agora – disse Kaitlin.

Eu não tinha pensado tão longe. O que Cian faria? E eu, vou fazer o que? Ela estava sozinha quando a conheci no cais, talvez ela voltasse à sua vida solitária na floresta.

– Teremos que voltar para chegar a tempo do Encontro em breve – eu disse— e ainda não encontramos Alichapon-tupec.

–Estou começando a pensar que não existe esse lugar, mas de toda forma, Cian me deu amostras e informações sobre plantas suficientes para compensar uma dúzia de Alichapon-tupecs, vou levar um mês inteiro para organizar e catalogar tudo.

– E o encontro?

– Se ainda formos a ele – disse Kaitlin.

Minha irmã, sempre estava alguns passos à minha frente.

–Eu pensei que estávamos indo para o encontro cigano nos Pirineus e depois para a Riviera no outono, não?

–As coisas mudam.

Agora eu estava em um dilema, mas aparentemente, Kaitlin já havia chegado a uma decisão. Ela não gostava muito de explicar seus planos em detalhes, e eu nunca fazia muitas perguntas, sempre preferindo descobrir as coisas por conta própria.

Decidimos nossos planos vários meses antes, no encontro, Kaitlin compilaria anotações sobre remédios ciganos e populares, depois passaríamos um ano na Riviera enquanto ela editaria e revisaria sua etnofarmacopedia, preparando-a para publicação. Mais de uma dúzia de cadernos estavam cheios de anotações e espécimes de plantas medicinais que ela colecionara ao longo dos anos, junto com os esboços que eu desenhei para ela.

Na Riviera, perto da vila de Villefranche, ficaríamos no grande hotel Miratroka. Mon ami Monsieur Victoy, dono daquele estabelecimento gentil e um cavalheiro, me dava emprego sempre que aparecíamos à sua porta. E era lá que no outono, esperávamos colocar Rachel em uma escola inglesa por um ano, enquanto sua mãe trabalhava no manuscrito. A menina era, sabíamos, muito avançada para qualquer aluno do terceiro ano, mas achamos que socializar um pouco nas salas de aula e no pátio da escola a faria bem, para equilibrar seu bem-estar intelectual.

– Eu me pergunto – eu disse – qual é a palavra Yanomami para casamento?

– Natohiya – foi a resposta rápida de Rachel.

Kaitlin olhou para cima.

– Como você sabe disso?

A menina deu de ombros.

– Nós falamos sobre isso.

– Por quê? – eu perguntei.

– No começo – disse Rachel – Cian pensava que você e minha mãe eram casados e eu era sua filha.

– Você aprendeu muito Yanomami? – Kaitlin perguntou.

– Nem tanto, mas consegui algumas palavras e, usando nossas mãos, podemos conversar um pouco. Também estou ensinando português para ela, ela ficou muito feliz quando lhe disse que o nome do meu pai é Ian e ele constrói grandes coisas no oceano.

– Ian McAveety. – disse Kaitlin – Eu não penso nele há meses, você e eu poderíamos vê-lo na Escócia. Você gostaria disso, Rachel?

– Não sei, não o vimos pouco antes de irmos para a Índia? Quando Cian disse que se você e Saxon eram casados, contei a ela sobre Ian.


– Sim – disse Kaitlin – mas isso foi há dois anos, você não sente falta do seu pai?

– Talvez – disse a garota – mas se ele me quisesse, viria nos encontrar. Ela rolou Hero para esfregar sua barriga. –Além disso – disse ela – tenho tio Saxon para cuidar de mim.

Kaitlin voltou-se para mim.

– Casamento? – ela perguntou.

– Eu estava pensando – eu disse a ela – como os Yanomami se casam.

– O chefe – Rachel disse enquanto brincava com seu cachorro – amarra suas mãos com uma videira, diz algumas palavras, então todos vão fazer uma shabona para eles, só isso e estão casados.

– O que é shabona? – eu perguntei.

– Uma cabana – disse ela – como aquelas da vila.

Eu olhei para minha irmã.

– Acho que é melhor começarmos a procurar um chefe amanhã.

Rachel sorriu esfregando a barriga do cachorro.

– Acho que você vai querer perguntar a Cian sobre isso primeiro – disse Kaitlin.

Capítulo Sete

Quando acordei depois da meia-noite para puxar o cobertor sobre Cian, ela havia partido.

Eu queria ir encontrá-la, mas nunca conseguiria, a menos que ela quisesse ser encontrada. Ela poderia estar em uma das árvores, olhando para mim naquele momento, voltando à sua aldeia ou em milhares de outros lugares na floresta escura. Talvez ela tenha tomado sua decisão e me deixado para sempre, esse pensamento me deixou arrasado, desamparado.

Eu cutuquei o fogo e olhei em volta procurando lenha, a bolsa de Cian estava ao lado da minha. Foi um alívio ver arco e as flechas ao lado do nosso equipamento, ela não deixaria aqueles para trás. Acendi o fogo e esperei.

Hero acordou com o som das chamas crepitando, quando me sentei com o cobertor puxado sobre meus ombros caídos ele se aproximou e ficou ao lado da fogueira, olhando para mim. O seu hábito de soprar uma lufada de ar pelo focinho era incrivelmente irritante. Ele bufou para mim e saiu trotando para a floresta. Que cachorro.

Ele voltou cerca de vinte minutos depois, seguido por Cian, ela estava completamente molhada.

– O que aconteceu? Eu perguntei, colocando o cobertor em volta dela.

Hero foi até Rachel e deitou-se ao lado da garota adormecida.

–Estou onde a corrente de água desce sobre o topo rochoso – disse Cian – como você diz isso?

Ela tirou a saia molhada e me entregou, coloquei-a sobre minha mochila perto do fogo para secar.

–Cachoeira?

–Sim, eu estava naquela cachoeira quando o cachorrinho Hero chegou ao lado das águas e me deu uma lambida feliz.

– Por que você estava na cachoeira?

Esfreguei o cobertor macio sobre seus ombros e braços, depois a virei em direção ao fogo para secar as costas.

– Gostar água pulando em mim, jogar todas as coisas feridas.

A combinação de yanomami e português de Cian não era tão clara, mas o uso de sinais de mão me ajudava a entender, às vezes, seu corpo me dizia tudo que eu precisava saber. Eu quase podia ver as águas frias caindo sobre ela e acalmando as dolorosas lembranças.

Eu a virei para mim, envolvi o cobertor em seu corpo e a abracei, ela deitou a cabeça no meu peito.

– Cian – eu disse depois de um momento.

Ela olhou para mim.

– Quando você foi buscar água antes do jantar, levou os ratos com você.

Ela fez que sim com a cabeça.

– Mas quando voltou, o saco estava vazio.

– Eles se foram agora.

– Para onde?

– Eu os libertei, eles correm para as árvores, nunca olham para trás.

– Ótimo.

– Saxon – disse ela, pegando um canto do cobertor para secar os cabelos – Quantas noites e dias leva para atravessar a água grande que Kaitlin fala, para ir à sua tribo?

– Minha tribo?

Ela fez que sim com a cabeça.

– Ah – exclamei – o Encontro Cigano.

Não sou cigano, pelo menos não de sangue, mas suponho que estejam tão perto de ser minha tribo quanto qualquer outra pessoa.

– É uma jornada de mais de quatro semanas a partir daqui.

– Semanas?

– Quase trinta dias – eu disse.

Ela soltou o cobertor, que escorregou das minhas mãos e caiu no chão. Olhei para minha irmã e sobrinha, elas ainda estavam dormindo.

– Mostre-me os dedos – disse ela, pegando minha mão.

Contei meus dez dedos para ela, depois seus dez dedos, depois os meus novamente.

– Até aqui?

Eu assenti.

– Você sair perto agora?

– Sim – eu disse.

– Aquele lugar que você vai, é casa de árvores como este também?

–Está nas montanhas dos Pirineus e, sim, provavelmente na floresta.

– O que são montanhas dos Pirineus?

– Muitas grandes colinas – eu disse usando minhas mãos para ajudar a explicar.

– Tem boa caça lá, certo?

– Talvez.

– Você volta para a Amazônia algum dia?

– Eu não sei

Ela olhou para mim por um longo momento e então sua expressão mudou. Seu rosto ainda tinha aquela aparência doce e aberta de quem está apaixonado e quer que seu amante o conheça, mas também via algo que não estava presente antes. Era como se ela tivesse tomado uma decisão, e seus olhos assumiram um olhar determinado.

Ela pegou sua saia quente e enrolou-a em torno de si, dobrando a borda ao longo de sua cintura para segurá-la no lugar, então levantou meu braço esquerdo até que ele se estendeu, paralelo ao chão. Ela encarou o fogo e olhou novamente para mim, deixei cair minha mão para colocá-la em seu quadril.

– Não – ela disse – devolva a mão para onde estava no ar.

Eu fiz o que ela disse, então ela estendeu o braço esquerdo para combinar com o meu, as pontas dos seus dedos alcançaram meu pulso.

– Hmm – disse ela – uma mão mais longa que o meu.

– Por que você está medindo meu braço?

Ela pegou minha mão, colocando-a nas costas dela

– Cian faz Saxon curvar e aguçar as mãos dele para poder caçar naquele outro lugar da floresta, atravessando água grande.

Talvez ela não pudesse falar minha língua tão bem, mas eu a entendia perfeitamente.

* * * * * *

Dez dias depois, eu estava no convés, final da tarde, fumando meu cachimbo e assistindo o Atlântico. Embarcamos no Borboleta Nova, pelo porto do Rio de Janeiro. O borboleta era um antigo cargueiro de 480 pés e bandeira portuguesa. Minha irmã e eu fomos contratados juntos e conseguimos passagem para Lisboa, eu servia como marinheiro e Kaitlin trabalhava na cozinha com outra mulher que veio do Egito. O nome copta dela era, para nós, impronunciável, por isso a chamávamos Cleópatra.

O trabalho a bordo serviu para nós dois, e foi satisfatório para nossos bolsos, assim como para nossas almas. Construir nosso caminho através do oceano, exatamente como havíamos feito juntos muitas vezes antes, tanto a leste quanto a oeste.

Este era o nosso segundo dia fora do Rio, e meu turno havia acabado de terminar. Era bom estar no mar novamente. Uma longa jornada no oceano elimina o pó das regalias continentais. Preocupações que me inundavam apenas uma semana antes, agora pareciam triviais em comparação com a vastidão das águas profundas que nos cercavam.

Despertei de meus devaneios por alguém se aproximar ás minhas costas, logo reconheci quem era pelo som dos passos no convés.

Capítulo Oito

– Olá, Dortworthy – eu disse sem me virar.

Com aquelas botas de caubói, ele não seria capaz de ser nem um pouco discreto.

–Boa noite, Sr. Saxon, tentei não o incomodar, era evidente que estava em profunda concentração.

Então por que não seguiu outro caminho?

Por alguma estranha razão, Dortworthy considerou nós dois amigos, ou, pelo menos, assim fingiu.

– O que você quer? – eu perguntei.

Stanley Dortworthy tinha pequenos olhos castanhos, juntos como uma cabra. Seu lábio superior provavelmente sofrera alguma deformação, ele o mantinha escondido sob um bigodinho de Hitler.

– Talvez depois do jantar possamos ter uma revanche do nosso jogo de xadrez. – Ele disse – Acho que ficou um pouco distraído na noite passada quando sua rainha caiu diante do meu peão.

– Odeio xadrez – eu disse – e você sabe o que mais…

Dortworthy me interrompeu.

– Bem, bem – disse ele – há o Sr. Choy.

Nosso segundo companheiro descia os degraus da ponte, levando-os dois por vez. Choy havia algo entre chinês e norueguês. Enquanto ele herdara todas as características faciais de seu pai chinês, olhos, cor da pele e longos cabelos negros, que ele usava em uma trança pendurada até a cintura nas costas, a constituição de seu corpo vinha do lado escandinavo. Ele tinha mais de um metro e oitenta de muitos músculos através dos ombros.

Dortworthy me deu boa noite e seguiu a conversar com ele, pobre Sr. Choy.

Encontrei nossa pequena cabine escura e vazia, Kaitlin estava ocupada na cozinha, e Rachel provavelmente estava brincando com seus novos amigos, Billy e Magnalana. Peguei meu arco das cavilhas acima do beliche e percorri com as pontas dos dedos sua curva suave enquanto pensava na construção da arma.

Duas semanas antes, Cian me levara em busca da madeira para fazer meu arco, ao que entendi, deveríamos encontrar uma árvore atingida por um raio, morta por, pelo menos, duas temporadas, mas ainda de pé. Ela encontrou e rejeitou várias até chegarmos a uma que acredito ser membro da família dos teixos. Ela subiu e cortou três galhos grossos, jogando-os para mim.

De volta ao nosso acampamento na margem do rio, ela começou a trabalhar em um dos galhos, o dividiu longitudinalmente com sua faca de pederneira, seguindo os veios da madeira. Depois de alguns minutos, ela o deixou de lado pegando o segundo. Peguei o galho descartado para examiná-lo, a madeira tinha um tom claro como de nogueira, veios finos e certa elasticidade.

– Esta não é boa? – eu perguntei.

Ela apontou com a faca para um nó na madeira. —Conlak depi – disse ela – como você fala isso?

Balancei a cabeça.

– Pularia ali, pensa o que é isso.

– Ah – eu disse – quebraria no nó.

Ela trabalhou rapidamente depois de dividir o segundo galho em três seções e selecionar a peça central para formar um arco, esta estava sem nós e bastante reto.

– Deve ficar plano aqui – disse ela – e aqui. – Ela tocou a faca nos dois lugares que se tornariam os pontos de sustentação do arco – Mas não neste lugar. – Ela indicou o meio, onde estaria a empunhadura.

Ela trabalhou os dois arcos em ambos os lados, depois os afinou nas extremidades, logo o arco foi terminado e amarrado com uma tira.

Ainda sozinho, em nossa cabine no Borboleta, peguei uma das minhas flechas da aljava de couro e pressionei, puxando a corda trançada para minha bochecha. Eu mirei através da seta em direção a uma vigia. Gostei da sensação de poder no arco e das finas linhas da flecha, com as bárbulas verde e vermelha das penas de papagaio na extremidade do entalhe.

Se um cervo galopasse por aquela vigia

–Abrir janela para enviar a afiada aos peixes, você pensa.

Minha mão pulou, mas a flecha não escapou.

– Você me assustou – eu disse.

Cian riu.

– Soriwa é o nome da palavra para irmão da árvore, acho que você quer dizer que koriwa ficou assustado.

– Pensei que você estivesse brincando com Rachel e suas amigas.

– Sim, eu mostro a elas jogo nak-nak com pedrinhas, jogar na parte de trás do barco por muito tempo a partir daqui, provavelmente.

Recoloquei meu arco em seu lugar, pisei ao lado dela e fechei a porta. Eu então a peguei em meus braços.

– Ensine-me a palavra para isso – eu sussurrei.

* * * * * *

Uma hora depois, Cian e eu, junto com o resto da família, estávamos assistindo o pôr do sol no meio do convés a estibordo.

Estibordo sendo o lado anatômico do lado direito do navio, para aqueles que não são navios muito iluminados.

Eu sorri para mim mesmo quando aquelas palavras do capitão Riley flutuaram de volta para mim através dos anos, tinha doze na época e não conhecia a popa do arco. Kaitlin tinha dez e ficou apavorada naquela manhã em que fomos apanhados, eu também estava com medo, mas tive que mostrar coragem por minha irmãzinha. Escorregamos a bordo do Castelo de Marfim duas noites antes, enquanto a tripulação estava ocupada preparando a carga. Nos escondemos em um barco salva-vidas e ficamos lá até o navio partir de Nova York. Na manhã seguinte, saímos à procura de um lugar quente para nos escondermos e, talvez, de algo para comer, quando um marinheiro português nos pegou por trás arrastando-nos para o capitão.

O capitão Riley tentou agir de modo rude, mas a pequena Kaitlin, tremendo diante dele, com seu vestido de algodão fino e sapatos gastos sem meias, derreteu sua determinação. Ele nos levou até a cozinha para um café da manhã quente e ordenou que um dos marinheiros encontrasse um casaco para minha irmã. Nós mentimos para o capitão Riley. Disse a ele que éramos órfãos e fugimos de uma velha malvada que nos fazia trabalhar o dia todo pelo pouco de comida e abrigo que ela nos deu. Kaitlin e eu tínhamos decidido a história antes, e ela concordou, enquanto rasgava um pedaço de pão e enfiava a maior parte na boca.

Nossa história era parcialmente verdadeira, nós éramos órfãos, mas não queríamos que ninguém soubesse de onde viemos porque pensávamos que seriamos entregues ao nosso único parente vivo. Nossos pais e avós haviam morrido no ano anterior em um incêndio na casa em Abilene, Kansas, deixando-nos apenas com nosso tio Bart. Ele não tinha um emprego regular, mas sempre dirigia um carro novo e tinha muito dinheiro para gastar. Papai nos disse que trabalhava para a Máfia como executor, fosse o que fosse, nas poucas vezes em que o visitávamos, ele sempre tinha uma namorada nova e estava bêbado barulhento, contando piadas obscuras e soprando fumaça de charuto em nossa cara.

Ele era irmão do meu pai, mas meu pai sussurrara para ficar longe dele, me lançou um olhar severo e disse:

–Você está me ouvindo?

Nós nunca ficamos muito tempo em sua casa.

Kaitlin e eu fugimos de um lar adotivo temporário quando ouvimos a assistente social dizendo a nossos pais adotivos que ela havia localizado um de nossos parentes e estava tentando entrar em contato com ele para ficar conosco. Decidimos nos arriscar na estrada em vez de seguir com o tio Bart, acabamos nas docas da cidade de Nova York, onde vimos o Castelo de Marfim carregando, gostamos do nome do navio e decidimos nos esgueirar adentro.

Enquanto tomávamos aquele maravilhoso café da manhã, o capitão Riley disse que estávamos longe demais no mar para retornar a Nova York, quando atracamos em Liverpool, Inglaterra, ele teria que nos entregar às autoridades e elas descobririam o que fazer comigo e minha irmãzinha. Enquanto isso, ele disse, teríamos que trabalhar para ele se quiséssemos comer e ter onde dormir.

Ele nos fez trabalhar, mas era bem leve, passávamos a maior parte do tempo com ele na ponte ou na cabine, ouvindo suas maravilhosas histórias sobre o mar e todos os lugares exóticos que ele visitou. Quando chegamos a Liverpool, Inglaterra, ele nos disse para ficarmos fora de vista e ordenou que sua tripulação ficasse de boca fechada sobre os dois jovens clandestinos a bordo, isso não seria muito difícil para os marinheiros, já que falavam apenas português. Cinco dias depois, navegamos para a Cidade do Cabo, o Castelo de Marfim estava carregado com dezoito toneladas de dinamite e quarenta e três cabeças de gado,

Kaitlin e eu fomos designados para o importante dever de cuidar dos potros e bezerros. Enquanto trabalhávamos, fiquei de olho nos caixotes de explosivos empilhados, catorze caixas de altura nos três lados dos currais. Os bezerros e potros mastigavam a alfafa de nossas mãos e pareciam não se importar com a possibilidade de explodir em pedaços a qualquer momento, assim como Kaitlin, mas eu observava continuamente qualquer mudança na carga ou fraqueza na rede de corda que segurava as caixas.

campainha do Borboleta tocou, sinalizando o início do segundo turno de guarda e me trazendo de volta das minhas memórias. Enchi meu cachimbo na bolsa de couro, Kaitlin teve uma pequena folga da cozinha antes do jantar e eu fiquei de vigia até as quatro da manhã, dando à nossa pequena família a oportunidade de ficarmos juntos por alguns momentos antes da refeição da noite.

O sol foi tomado por uma muralha de trovoadas que se aproximava do sudeste ao longo do horizonte, proporcionando um brilho dourado através das cortinas de chuva que se inclinavam para o oceano. Cian inclinou a cabeça e depois se afastou lentamente de nós, na direção do castelo de popa, Ela parecia estar em algum tipo de transe hipnótico, movendo-se silenciosa e deliberadamente, tentando não emitir um som que dissolvesse ou afugentasse as notas exóticas e melódicas que chegavam ao seu ouvido inocente, subiu o meio lance de degraus de dois em dois passos até o tombadilho, como era necessário por causa de sua perna direita desajeitada e nós a seguimos, quase como um, imitando seus cuidadosos passos. No andar superior, encontramos Doki, o fogueiro da sala de máquinas, sentado na cabine baixa, tocando violão enquanto se recostava nas primeiras sombras do crepúsculo que se aproximava. Doki tinha quase setenta anos, imaginava, era magro e ossudo, seus cabelos longos e grossos haviam sido penteados em algum momento nos últimos dias, mas parecia que cada mecha cinza tinha vontade própria, querendo esvoaçar para múltiplas direções.

Cian ficou parada ouvindo, como se estivesse paralisada, os ágeis dedos de Doki dançavam sobre as cordas de um instrumento velho e desgastado que poderia ser mais velho que o tocador.

– O quê…? – Cian sussurrou, quase sem voz.

Não sabia se ela queria o nome da música, a natureza dos sons ou o velho, mas antes mesmo que eu pudesse dizer qualquer coisa, outra voz veio de uma espreguiçadeira nas proximidades.

–É a Sonata ao luar, de Beethoven.

Na verdade, a voz não vinha da própria cadeira, mas de sua ocupante.

Cian se virou na direção da voz, mas eu sabia que ela não havia compreendido uma só palavra dita.

–Qual o seu destino?

Esta, exatamente como a primeira afirmação, chegou a nós em perfeito espanhol castelhano e foi dirigida, pensei, a mim. Vimos a senhora balançando os pés no convés e, auxiliada pela bengala, puxar-se suavemente para uma posição ereta. Ela ajeitou seu longo vestido, de brocado vermelho, e ficou ali por um instante, nos últimos momentos amarelos do dia, obviamente acostumada a chamar a atenção de todos com sua presença.

– Insisto que me desculpem —ela continuou, caminhando em direção a uma abertura no parapeito que acabara de aparecer ao meu lado, onde Kaitlin e Rachel estavam apenas um momento antes. Observando atentamente, podia-se detectar que ela mancava um pouco em seu passo imponente. – Ouvi seu discurso e, ainda que considerasse toda minha vida não consigo determinar o idioma, apenas deduzi sua pergunta por sua atenção ao nosso músico aqui – Ela balançou a bengala na direção de Doki e depois encaminhou seu olhar para Cian – Me permite ver sua perna?

Minhas habilidades linguísticas eram boas, mas meu conhecimento de espanhol se limitava às palavras semelhantes em português.

– Com licença – eu disse em meu português cuidadoso— você pede meu braço?

Ela estava me pedindo para acompanhá-la até a amurada do navio? Dei um passo em sua direção e ela me parou com sua bengala.

– Não, não – disse ela, balançando bastão esguio na direção de Cian – Gostaria de ver a perna de sua servidora. Essas palavras vieram quase como uma ordem.

Hero rosnou em sua direção, eu vi aquele olhar selvagem em seus olhos, os pelos pretos ao longo de sua espinha endureceram, Rachel rapidamente pegou o animal para mantê-lo afastado.

Eu entendi a palavra “servidora”, como Kaitlin. A mulher estava perguntando algo sobre Cian, a quem ela assumiu ser nossa serva, eu queria esclarecê-la sobre isso, mas seria difícil no meu fraco portunhol.

 Parlez-vous français? Kaitlin perguntou. Sempre descobrimos que o francês é a língua falada com mais frequência no mar, sendo o esquecido inglês de pouca utilidade a bordo ou em qualquer outro lugar daquele tipo.

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