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Год издания: 2017
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Almachio Diniz

Mundanismos

NEDDA

Manhansinha.

A sala, de azuladas paredes seminúas, estava pobremente mobiliada: era no saguão da casa, e as duas mulheres entraram às tontas, até se abrirem de par em par as gelosias.

SAUL, de NEDDA esposo, ficàra a dormir na alcova.

E NEDDA, abysmada com a indifferença delle que apenas lhe não dirigia um monosyllabo desde a hora do facto, comprehendeu logo que DONA LOURA, a sua mãe, era uma interprete das indisposições do genro…

Num canapé, as duas mulheres, DONA LOURA, archaica nas suas vestias de capote e turbante, e NEDDA, deliciosamente matutina num roupão branco que descansava, sans-dessous, sobre a finissima camizêta de cambraias, – sentaram-se, afundando em concavos a palha flaccida do cansado movel…

– Esperava-te, maman, qualquer das horas. Quando vejo Saul levando-me entre dentes e indisposto como um burguês dispeptico, silencioso como uma esphynge e entristecido como um beato sem almoço, adivinho logo que vens por ahi como a mensageira da paz. E elle foi procurar-te hontem à tarde…

– Exactamente.

– Previ tudo isto. Ha cinco dias que nós não falamos, e, pensando-o na rua, hontem, vim ter aqui. Foi quando topei com elle, sentado naquella cadeira, lendo a Biblia, ou folheando-a, apenas… Vendo-o, assustei-me e não contive um gritinho de susto. Mas tornei immediatamente sobre os meus passos. Ha quatro annos que somos casados e nunca passamos dois mezes sem uma rusga. É sempre elle quem as promove com um resaibo de malentendido ciume. Aceito sempre o seu rompimento e nunca lhe dei a honra de capitular nas hostilidades. Quando ellas são de nonada, aqui mesmo se resolvem; mas, quando avultam como agora, elle te vai buscar como intercessora. Jà sei que vamos ter, como sempre, uma crise de amorosidades que me enfastiam. Lastimo é não conceber um filho desse homem para o embeiçar pela nova criatura e sentir-me menos jungida às suas intemperanças de… mal educado! Ás vezes, chego a ter nojo do senhor meu marido…

– Que blasphemia, Nedda! Dizes isto do teu esposo com um sangue frio que me pasma…

– Devias esperar isto. Cazei-me contra a minha vontade ao depois de ter o assedio do seu amor por mais de cinco annos. Tudo inventei para que um tal matrimonio não se fizesse. Por ultimo espalhei, e fiz conhecer-se em caza, por torna-viagem, a mentira de que Saul é um tuberculoso. Tanto mais eu o aborrecia, quanto a senhora e o papá intervinham, patrocinando a causa do moço platonico. Dá-me, na verdade, um insistente desejo de rir muito quando lembro os idealismos delle, seguindo a minha sombra, porque nunca lhe deixei o direito de enfrentar-se commigo em parte alguma… Expúz-lhe sempre que sonhos não me satisfaziam, nem eram para o meu temperamento homens vaporosos, poetas e doutores… Movi-lhe intensa guerra, apaixonando-me por Frederico Stöltze. Está! Com este provavelmente eu teria sido bem cazada. O pobre «allemãosinho» levou o caso muito a serio e cazou-se, logo que eu o abandonei, com uma defeituosa… Foi um despique, não ha a menor duvida, mas quem sahiu perdendo foi elle. Saul é um temperamento de phoca…

– Respeita o teu marido, minha filha!

– Pois não é, maman?

– Essas couzas não se devem dizer…

– Não tratarei de occultar o sol com a mão. Já disse e é mesmo: um temperamento de phoca. Só quer hybernar sobre os livros, deante dos quaes se abespinha como o animal sobre o gêlo. Eu, porem, quero muito sol, muita luz, muito calor, muita actividade… Maman, o que vocês velhos veem no cazamento é o interesse de collocar as filhas, porque ficando velhos receiam que nos tornemos muito sós no mundo. Por isso acontecem destas, cazamo-nos com a vontade dos papás encarnada na figura de um homem que não é a correspondencia de nosso instincto. Olha! Não intervirei nunca no cazamento de ninguem: cada qual commetta a sua doidice como quizer, e, se escolher um lorpa como Saul, arrependa-se de si mesmo e não me culpe a mim.

– Tu vês no homem uma excitação, Nedda, quando devias ver uma satisfacção.

– Deixasses eu escolher como tivesse querido, e estarias livre hoje dessas trabalheiras de paz… Saul, antes de meu marido ser, soffreu toda a minha repulsa. Cazada fui tolerante. Elle, no entanto, não sabe aproveitar-se de minha tolerancia e quer subserviencia, servidão, ou coisa similhante… Está enganado! Devias ter sanccionado a minha repulsa logo de principio. Lembras-te do convescóte dado aos chilenos, nas Salinas? Tu não foste, e Saul, que era apenas meu pretendente sem a menor esperança, moveu contra mim uma intriga terrorosa, porque viu, no campo, o primeiro tenente Santander amarrar os cordeis de minha botina que estavam difficultando-me o andar. Deves recordar-te de como energicamente o reprimendei, quando soube que lhe cabia a autoria do contado… Note-se que era apenas um pretendente, como muitos havia, todos suggestionados pela minha belleza pouco commum neste bairro de mulheres feias. Afinal, maman, que te disse elle desta vez?

– Saul comprehende o amor como uma esthesia, minha queridinha, e tu o comprehendes como um devaneio. Isto é proprio para as meninas. Tu te esqueces, e nisto eu lhe dou razão, que és uma senhora escrava da moral esponsalicia. Contou-me o teu marido um facto em que elle te surprehendeu. Realmente, se as cousas se passaram como podem ser suppostas, e elle não quer crer, tu andaste mal.

– Tu o ouviste, elle contou o acaecido a seu geito… Ouve, agora, como tudo se deu…

– E dispensavel Nedda. O passado está passado. O que é preciso é que não dês lugares a aleives e que poupes os amuos. A alma dos homens tambem calleja. Os amuos fazem pequenos callos, mas tempo virá em que, callejada a alma, o amuo será definitivo.

– Que teria isso?

– Um escandalo, minha filha!

– Para adquirir a minha liberdade maman, que tu sacrificaste, eu não me pouparei a um grande escandalo.

– Toma juizo, doidinha. É preciso acabares com estas zangas e receberes o teu marido como o teu senhor…

– Hein?.. Não me zangarás, maman, pódes ridicularizar-me como entenderes… Não me darei por achada.

– Não promovo senão o teu bem. Resolve a crise e sê… mulher de teu marido.

– Jà estás julgando o feito?

– Tu tens toda a razão, elle tem igualmente toda a razão. Harmonisem-se e sejam felizes.

– Pareces-me uma juiza a Salomão, com a differença de que o rei hebreu ouvia ambas as partes em conflicto, e tu julgas com a audiencia de uma só…

– Interpretas muito mal o meu genio.

– Não te interessa conheceres a injustiça de que sou accusada pelo sr. meu marido?

– Fala, minha filha! Mas tem a certeza de que, fosse qual fosse a accusação, eu nunca seria contra ti.

– Obrigada, maman! Quero, entretanto, justiça, e que, como Saul, não julgues pelas apparencias. Daria a vida para saber como elle te referiu o que se passou…

– Deixa o que elle me disse. Narra o que tu sabes…

– Pois bem! Na terça-feira, maman, de combinação com Saul, resolvi passar uma temporada num arrabalde. E, devidamente autorisada por elle que me falou pelo telephono, fui à Barra correr uma cazinha vaga e que nos serviria. De caminho, encontrei-me com o dr. Eduardo que, ao depois de saber ao que eu ia, daquelle modo desacompanhada, teve a gentileza de offerecer-se-me para o serviço de abrir e fechar portas. Aceitei e foi elle quem tomou as chaves na taverna da esquina… Vê tu!.. Não fôsse elle e teria eu de entrar numa taverna, sósinha, arriscada a ouvir qualquer indecencia… Ao depois, o dr. Eduardo foi quem abriu a porta… Como eu me ataria de luvas de camurça para fazer essa diligencia?.. Umas chaves muito pouco asseiadas… Corremos o primeiro andar da caza, e, quando passamos ao sotam, o meu gentil cavalheiro se lembrou de, por segurança, fechar por dentro a porta da rua… Subimos. Mal chegavamos em cima, começaram de bater numa porta. Poderia eu suspeitar que o meu marido, tendo ordenado que eu fosse, porque elle não teria opportunidade de acompanhar-me, logo depois resolvesse o contrario, e estivesse a bater na porta da rua? E foi por um acaso que nós o vimos. Chegamos inesperadamente a uma janella do sotam e percebemos que era elle quem batia. O dr. Eduardo, desculpando-se por jà ter eu cavalheiro, despediu-se de mim, desceu as escadas, e, quando abria a porta, foi insolentemente aggredido por Saul, que lhe negou a mão para o cumprimento do estylo… Só tu vendo, maman, a furia com que o sr. meu esposo investiu contra mim! Felizmente, desafiado pela minha calma, elle não teve animo para iterar o qualificativo mau com que me mimoseou. Dei-lhe as costas e, se elle quiz, fechou sósinho a caza e veiu só…

– Devias ter evitado tudo isto, Nedda.

– Evitado, como?

– Não acquiescendo à companhia de um homem de mà fama, como é o dr. Eduardo.

– Adivinhasse eu que elle viajaria para a Barra naquelle mesmo bonde em que eu fui… Hora de trabalhos na cidade…

– Recusasses os favores offerecidos.

– Ora, maman! Deixa-te de coisas! Qual é a mulher que se anima à grosseria de recusar gentilezas de um moço de distincto trato?..

– Conforme o renome desse moço.

– Tem mà fama o dr. Eduardo?

– Não sei, não. Dizem.

– Se tem mà fama, tem maus costumes. E como é que Saul, tão zeloso de sua honra, admitte, no seu convivio e nas suas recepções, um homem mal visto? Penso que os frequentadores de nossos salões, os habitués de nossa intimidade, sejam pessoas dignas de acompanhar-me a um ponto qualquer, e, se não fôsse assim, a primeira privação delles, seria a do nosso convivio…

– Neste ponto és razoavel, sou eu a primeira a reconhecer… Mas, Saul referiu-me que estavas sem chapeu…

– De facto. Ao depois que o dr. Eduardo se despediu, esbarrei na telha van do sotam, e enchi as flores do chapeu de teias… Sabendo que o sr. meu marido alli estava para auxiliar a reposição, tirei o chapeu e asseiei-o prestamente…

– Diz mais elle que estavas empurpurada e que te confundiste com a sua chegada, ao ponto de não saberes repôr o chapeu…

– Saul é um mentiroso.

– Não te zangues, Nedda.

– Injuriou-me.

– Não dês importancia a isto e resolve-te a aceital-o pacificamente…

– E elle o quer?

– Porque perguntas?

– Porque tão honrado elle não deveria aceitar mais a cohabitação da esposa deshonesta.

– Não deves dizer assim, minha filha!

– Aceita-me elle?

– Que tolice, Nedda!

– Maman, Saul deveria ter agora a minha repulsa definitiva, e não a faço em attenção aos teus bons officios…

– Fazes muito bem.

– Là vem elle descendo…

– Trata-o bem, minha queridinha! Um lar que não tem esposo…

– Desculpa-me, maman: só agora reparo que estou muito à vontade para nos encontrarmos os tres…

Arrepanhando, então, o bello roupão desabotoado, por cujas rendas e decotes se viam as carnes luciferas de NEDDA, a mulher de Saul se escapuliu, desenhando escorreita o seu impecavel corpinho de esculptura grega…

VOLUPTUOSAS

No rêz-do-chão de um palacete, coadas as luzes do sol por arrendados stores pallidos, HELENA fazia somno à hora da sesta, quando MARIA ANGELICA a surprehendeu adormecida.

A recemvinda impregnou o ambiente de essencia de iris, emquanto uma voluptuosidade ennervante empurpurava a linda cabeça desmaiada de HELENA…

Um beijo sobre os labios da desaccordada mulher, fel-a despertar com um fremito de prazer…

– De onde vens tu, Angelica?

– De encommendar flores…

– Flores?!

– Não te recordas de que Sophia se cazará amanhan, à noitinha?

– Sou uma esquecida.

– E ella é credora de nossas gentilezas…

– Das minhas, especialmente.

– Encommendei orchidéas e chrysanthemos.

– Que gosto! De minha parte vou mandar-lhe duas magnolias.

– Bellas flores, realmente. Mas, a natureza esmerou-se no chiquismo das orchidéas. Uma catyleia é um pedaço de labios excitados por dois beijos.

– Não lhes acho graça.

– Ó exigente!

– Flores do matto. E jà notaste que quasi todas ellas são lilazes e roxas? ou que se enfeitam com estrias e matizes dessas duas côres melancolicas?

– Descobres coisas…

– Mas, não é?

– Realmente.

– E como vais presentear uma noiva com flores lilazes?

– É a moda, é o chic, é o dernier-cri

– Olha! Nas minhas bodas manda-me flores alvas, muito alvas, chrysanthemos, rosas, cravos, magnolias… Comprehendeste-me?

– Se não! Agora, coisa notavel: eu te vejo com as faces pallidas e os olhos muito brilhantes…

– De verdade?

– Sim. Sonhavas?

– Nem me lembro! Parece-me que sim. E tu estás intensamente corada…

– Apanhei muito sol.

– Os teus olhos estão pisados e languidos…

– É da fadiga do caminho… Desde cedo na rua, exposta, Helena, ao calor que abraza e ao sopro canicular que afeia os penteados…

– Jà tinha reparado: os teus cabellos estão desmanchando-se…

– E eu os concertei no espelho de Esther.

– Andaste là, hein? Jà havia desconfiado… Quando te vejo amollentada, assim, tenho razões para me enciumar… É muito descuidada a Esther. Cuida mal das vestimentas das amigas. Olha o teu cinto, Angelica… Está mal posto, a fita está retorcida…

– Nem reparei…

– Disto não és culpada, por certo… Eu não te deixaria sahir daqui tão mal-amanhada. É de causar vergonha.

– Foi a pressa, Helena.

– E no teu hombro a sêda está nodoada…

– Nodoada?!..

– Sim! Vêem-se duas curvas vincadas como os bordos de uma… Nem sei mesmo que diga… Parece-me que te morderam o hombro?!..

– Quem o poderia fazer?

– Esther.

– És ciumenta! Fica sabendo: foi no jardim quando eu encommendava as flores. Deve ter sido agua das rozas, Helena, que aqui cahiu… Estás satisfeita?

– Muito pouco. Quando muito, illudida, minha flor, mas não convencida…

– Tu me censuras, e eu que te surprehendo com um esquisito fogo no olhar humido?.. Terá sido algum sonho delicioso… A tua voz mesmo é arrastada como a de quem se fatigou num excesso de venturas…

– Que venturas posso ter?

– Em sonhos podemos ser venturosas como jamais seremos na vida real… Morpheu capricha em povoar-nos a mente com espectaculos espantosos. Ha vezes em que, se eu pudesse, esganaria quem me desperta… E outras occasiões, quando volto a mim sem provocação, sou prompta a espantar-me porque me accordei e não morri no meio do prazer sonhado…

– Ha sonhos, effectivamente, que se não deveriam acabar… E não sentes calor, Maria Angelica?

– Algum.

– Neste caso…

– Que fazes?

– Dispo-me. Não me imitas?

– Póde ser. Passarei a tarde comtigo…

– Despe-te, pois… Tira o casaco… Desaffoga o collo desta góla assoberbante… Não tens geito?.. Chega, que te libertarei…

– Tira os alfinetes.

– Usas um bom pó de arroz, Angelica.

– Ui! Helena!

– Que foi assim, ardilosa?

– Espetaste-me as carnes…

– Tambem é uma ruma de alfinetões…

– É para segurar bem.

– Tens uma pellugem de arminho…

– Ai!.. Assim não… não…

– Que tens, rapariga?

– Beijas-me, Helena, com uns labios quentes e gulosos… Só me déste vontade de…

– Ui!.. ui!.. ui!.. Fazes-me um frisson de arrepiar-me os pellos…

– É para vingar o teu beijo…

– Porque me olhas assim, Angelica?

– És de uma alvura surprehendente, minha amiga. De teu corpo rescende um perfume originalissimo que me entontece…

– Aprendi a perfumar-me com as gregas. Li num livro que uma beldade se cubria de perfumes para agradar aos amantes. Eu o faço para attrahir as amigas como tu… Uma grega banhava as pernas numa bacia de prata em que se confundiam os aromas do nardo de Tharsos e do metôpyon do Aigypte. Nas axillas attritava mentho e sobre as pestanas e nas palpebras marjolana de kôs. Ao depois, a escrava defumava-lhe os cabellos desennastrados com espiraes de incenso, que combinava admiravelmente não só com a essencia de rozas de Phasêlis que lhe embalsamava a nuca e as faces, como tambem a bakkaris que se lhe derramava sobre os rins. E, por fim, entre os seios, corria o celebre oinanthê das montanhas de Chypre… Sei perfumar-me, Maria Angelica…

– Bem se lhe pareciam as gregas, tuas mestras…

– Entre os meus seios, inda ha pouco, deixei correr um fio languido do irresistivel Royal-Begonia, e nas axillas puz algodões embebidos na essencia de rozas… Nos meus cabellos derramei oleos de sandalo, para contrastar com as evolações das essencias de jasmins que perfumam as minhas vestias…

– E na posse de tudo isto praticas uma mà acção, Helena!

– Qual?

– Essa de referires tantos perfumes e não me dares nenhum a provar… És avarenta, como ninguem, e eu cubiçosa de gozar…

– Vai ao meu toucador e gasta do que quizeres…

– Teria graça!

– Porque assim?

– Gósto das flores nos vegetaes, das essencias nos corpos das mulheres. Quero experimentar com o olfacto o odor unico que se desprende das tuas carnes…

– Tens desejos masculinos, minha queridinha!

– E é o que me faz lamentar-me: junto de uma graça não ser um Adonis, junto de uma Helena não ser cupido… Se eu pudesse embriagar-me com os teus perfumes e desmaiar de prazer entre os teus prazeres, seria mais feliz do que Syrinx, louca de paixão, Byblis, unica na insaciabilidade, ou Mnasidika, macia como um velludo… Helena, tu és uma perfeição…

– Mofadora!

– Mofar eu de ti?!..

– Não te abraza o calor?..

– Sim… Intoleravelmente…

– Safa o collête… Assim… Que lindo corpo, Maria, e quantas seducções na tua plastica vista atravez da transparencia das gazes… Bem dizem os homens, sabios no sensualismo pagão, que o nú de veus é mais provocante do que o nú sem disfarces… Ha qualquer coisa de mystico, de irreal, na mulher encoberta pela semi-fluidez de um tecido fino… Se eu te não conhecesse os segredos todos de tuas lindas curvas, te rasgaria agora, impiedosamente, o veu de tua nudez…

– Jà sentiste, Helena, um prazer maior do que esse das carnes livres do arrôcho de um collête dictatorial?

– Quantas vezes?!

– Tu brincas, mulher divertida…

– Provo-te com a citação: despirei o meu collête e não me sentirei mais provocada do que contemplando as tuas fórmas semi-núas…

– Es barbara, Helena! Como encarceras um tão lindo quadril dentro dos oppressivos liames de um collête… Ah! Como eu daria a vida por ser morena! O ventre alvo é uma desillusão, mas o trigueiro, como o teu, é um incentivo. Parece o tegumento de um fructo e provoca o instincto mais calmo…

– Não te agrada a minha nueza?

– Inteiramente. Agora, vê là se te não impressiona mal a brancura do meu ventre…

– Ao contrario, Maria Angelica: é uma grande corolla de petalas alvas desenvolvida de um peluginoso calice de oiro… É maravilhoso o teu contorno… Dignas fórmas para a perpetuidade de uma téla ou de um retrato…

– Deixarias tu que fôsse apanhada a tua nudez?

– E porque não?.. Sei que fascinaria… Queres photographar-me?

– Que egoismo leviano!

– Acha-o?

– Sim… Photographemo-nos…

– Adoravel!.. Como não irradiará no cliché o contraste de nossas pelles, o macio sombreado de um tropico sobre a tentadora alvura nevosa de um pólo…

Os olhos das duas mulheres vestiu-se com uma luz liquida como uma solução de perolas e opalas.

Os seus labios permutaram cariciosos beijos.

E, horas depois, MARIA ANGELICA e HELENA, retratadas por uma aia, desvendavam as suas abrazadoras nuezas à inveja de ESTHER…

O POETA MORIBUNDO

Luxuoso salão de recepções: por entre cavallêtes com quadros de fina pintura, em que apparecem, de par com extrangeiros, o gosto de Parreira e a vocação de Prescilliano, vasos com flores, e, no meio das tapeçarias, dos fauteils e das luzes, um magestoso piano Ritter.

HELOISA acabou de executar, com todo o applauso do maestro CHRISTOVAM DETMER, a linda fantasia —Le poète mourant– de Gotschalk.

As ultimas notas perderam-se artisticamente: o maestro cheio de admiração e preso da infinita tristeza, dobrou-se e beijou os dedos que obedeciam á grande inspiração de HELOISA.

Esta olhou-o e transfigurou-se como uma alma reflexamente combalida pela dor de uma alma irman…

– Como esse poeta, Heloisa, que o grande musico fez morrer nas notas bemolisadas do piano, finou-se hoje o nosso amor… Emquanto executavas e os teus dedos arrancavam da alma do instrumento piedoso os sons do passional poema lyrico, me concentrei e te affirmo que a visão não despresou a audição, pois vi e ouvi toda a scena, desenvolvida entre personagens vivas, que se moviam, se soccorriam e testimunhavam o desfallecimento do artista moribundo. Durante minutos que serão inegualaveis na minha existencia de musico, aqui estive ao teu lado, frio como uma estatua, hermetico como uma esphynge, e não denunciei, pela ruga menor de meu semblante, a dor imperiosa que me ennervava a existencia. Vim do gabinete privado de tua mãe, que se transformou pacificamente no Satan de nossa felicidade. Falei-lhe ardoroso, como se lhe dissesse uma aria de Beethoven, contei-lhe minucioso e preciso a longa historia de nosso amor. Vejo, agora, que, por vezes, fui minudente de mais, rememorando o platonismo inedito com que te amei a alma de artista e não o corpo de mulher. Ao depois de ouvil-a, vim inspirar-me para o sacrificio no teu talento. E saio de tua presença illuminado como o prescripto que recebeu o balsamo do conselho christão para subir em seguida ao patibulo. Dá-me, pois, o conforto de tua confidencia ultima: amaste-me alguma vez?

– Que pergunta, Christovam.

– Indiscreta?

– Não; ao contrario. Amesquinhante…

– Extranho-te.

– Não ha razão. Porventura pensarás que te amei e não te amo agora? Acaso a minha mão de mulher para te ser dada dependerá de alguma coisa irreductivel deante de minha vontade altiva?

– Sinto-me lisonjeado, de facto, com a tua constancia, Heloisa. A cor dourada dos teus cabellos que te faz distincta entre as cabeças bellas de todas as mulheres, neste instante, afigura-se-me a grinalda de luz com que se enfeitam as santas nos seus altares. Mas, um maestro, um homem que sabe musica simplesmente, que é apenas um artista, é pequenino de mais para ter uma pretenção de amor. Eu me pareço com esta figura lendaria de Kadjira que destruia as rozas por prazer. No reinado das fantasias de ouro e de fidalguia com que se entontecem os teus paes em sonhos egoistas, cheguei, como a perversa princeza turca que despetalava rozas, derrocando castellos, para me conter na illusão em que me deleitava sómente com a audiencia da negativa inclemente de tua mãe. Confessou-me que maldava de todo o nosso amor, desde principio. E porque, se assim era, protegia a ampliação de um sentimento que deveria ser, como os filhos defeituosos das ciganas que são atirados ás piranhas, destruido no nascedoiro? Antes que eu lhe communicasse, falou-me em que se correspondias aos meus calculos de matrimonio, era porque, doidivana como toda creança, jogavas a péla na orla do precipicio, esperando o aviso amigo para te retirares gloriosamente… Negarás, Heloisa, que tinhas consciencia de minha pretenção? Sophismarás, em favor da excommunhão que me lançou a tua mãe, e contra a clareza da ordem que me deste afim de se officialisarem as relações do affecto, que nos encaminhava de um illusorio paraiso? Responde com o talento immensuravel com que sempre me amaste…

– Falas desatinadamente, Christovam, numa contingencia em que deverias possuir o maior tino dos homens.

– Tens o dom solar de illuminar o mundo pelos flancos, se uma nuvem pesada se antepõe á sua esphera…

– Sinto-me transfigurada. Amo-te ainda, e não te hei de amar fóra do regosijo delles…

– Dos teus paes?

– Sim. Acharias extranho se te dissessem que duas sementes postas em tuas mãos estariam vegetaes só ao sôpro de um fakir indiano. Porque admittirias que a minha vontade fosse forte bastante para romper a marcha das intenções dos meus paes sobre a minha razão de ser mulher? Por ventura sem o sopro do fakir as sementes germinariam e attingiriam as fórmas de seres definitivos? Não supporás que, sem aquelle sôpro, algo se realisasse. Como suppôres que sem a vontade dos meus maiores a nossa união se perpetraria ao teu sabôr?

– Desconheço-te já…

– Mas, porque…

– O sophisma substitue a tua logica: o amor cedeu o posto á quesilia dos outros…

– Esperarias o meu consorcio sem o consenso dos que me deram a existencia de mulher?

– Nem sei de mim mesmo que te responda…

– Não poderias esperar. Se eu fôsse livre, se a lagarta para ser papilio não carecesse de passar por ser chrysalida, nem eu te mandaria impetrar a sancção que nos faltou, nem os que nol-a negaram teriam razões para tal fazer. Aborrece-te o trovão? amedronta-te o curisco? Queres ver-te livre delles? Crê num Deus e pede-lhe a extinção… Infelizmente, Christovam, nem o trovão se extinguiria, nem o teu querer triumpharia… De um lado, Deus seria impotente para te dar o que pedisses porque não terias o direito de pedir… Só pede quem póde pedir; se se pede é porque de quem dá depende o pedido; e se o pedido não é dado, procura a causa na insufficiencia e na sem-razão de quem pediu…

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