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Memórias
Gostou sempre de fazer partidas. É o Schwalbach que conta:
– O imperador do Brazil logo que chegava ao theatro metia-se no camarote, descalçava as botas e calçava com regalo uns chinelos. Uma noite o Raphael, que estava então no Rio, foi pé ante pé, meteu a mão pela cortina e roubou-lhe as botas. O pobre homem não se desconcertou: sahiu em chinelos, atravessou em chinelos a multidão, saudando para a direita e para a esquerda, desceu ao pateo, e meteu-se em chinelos na carruagem.
Dezembro – 1900.Latino Coelho, contado por Maximiliano d'Azevedo:
Tinha coisas absurdas: estava sentado a conversar e levantava-se sem mais nem menos, compunha a trumpha, e ia espreitar á janella. Era todo de enguiços. Nunca sahia de dia. E que memoria! Dizia-se-lhe qualquer banalidade, e elle, d'ahi a mezes, repetia-a palavra por palavra. Discursos que revelam o conhecimento inteiro d'uma epocha, como o de Camões, que leu na Academia, e que foi escripto das sete ás onze da manhã, e lido ao meio dia, compunha-os com extrema facilidade.
D'uma vez estava elle em casa politicando com alguns amigos reformistas, o Mariano, o Lopo Vaz e não sei quem mais. Discutia-se a revolução de onze de maio. O Latino, dando um geito á trumpha, chegou á janella e viu o carro, puxado a mulinhas, do Saldanha:
– Ahi vem o duque… E aposto que vem para cá.
Efectivamente o carro parou á porta. Era o Saldanha. O Latino foi recebel-o n'outra sala, e, depois dos cumprimentos habituaes, o Saldanha perguntou-lhe:
– Sabe a que venho? Venho saber a sua opinião sobre o dia de hontem.
– Mas não tenho opinião nenhuma…
– Não se recuse, Latino. Peço-lho como amigo.
– Então, marechal, deixe-me dizer-lhe que quem como V. Ex.a conquistou um nome glorioso com a espada, não deve servir-se da canalha para fazer o que fez. A sua situação é deploravel.
– Não me diga isso! E se eu aproveitasse a situação para firmar de vez a liberdade em Portugal e salvar o paiz?
– Se V. Ex.a quizesse…
– Mas é que quero, e para isso venho ter comsigo.
Combinaram que o Latino redigiria os decretos ampliando as liberdades publicas, tornando-as efectivas, e convocando constituintes com poderes amplissimos.
– O maior segredo… – recomendou o Latino.
N'essa noite não dormiu. Acompanhado d'um amanuense do ministerio, redigiu os decretos, que no dia seguinte o proprio Saldanha foi buscar, metendo-os dentro da pasta. Mas fosse que os amigos que lá estavam em casa tivessem desconfiado; fosse que o Saldanha désse á lingua, o que é certo é que o rei foi prevenido a tempo por alguem que lhe disse:
– O Saldanha vae trazer-lhe uns decretos. V. Magestade não os assigne ou está perdido.
Quando o Saldanha chegou ao Paço o rei abraçou-o:
– Pois o duque ajudou a conquistar-me o throno e não quer que meus filhos reinem? Nem talvez eu chegue até ao fim da vida no poder…
Saldanha que era um fraco recuou. D'ahi a dias encontrou-se com o Latino que lhe disse:
– V. Ex.a não podia deixar-me dormir a minha noite socegado?
Por trez vezes, conclue Maximiliano, o Latino me contou isto. Já tenho querido descobrir os decretos. Devem estar em casa do irmão, n'um quarto interior, onde a traça vai roendo os papeis do grande escriptor…
*Um dia o Saraiva de Carvalho foi propor a revolução ao Latino:
– Mas ha-de ser tudo assassinado – toda a familia real.
– Isso não! – protestou logo o Latino.
*Morreu virgem, como Newton. No dia de sua morte, estava o cadaver na cama, apenas coberto com um lençol. Alguem disse para o Maximiliano:
– Bastaria arrancar aquelle lençol para descobrirmos o segredo de toda a sua existencia.
*Junqueiro dizia de Latino:
– Sim, é um homem admiravel, que em logar de c… tem duas castanhas piladas!
Maio – 1903.Um jornal publica hoje esta noticia:
POVOA DE LANHOSO, 29 – Faleceu, sepultando-se hoje, o sr. dr. Joaquim da Boa Morte Alves de Moura, da freguezia de Santo Emilião, bacharel formado em philosophia e mathematica pela Universidade de Coimbra.
O povo apelidava-o de santo, pelas suas sublimes virtudes christãs. Tinha 92 annos de edade; o falecido fôra frade agostinho.
O homem, a quem estas seccas linhas se referem, era na verdade um santo. Deixou tudo para viver pobre, perto de S. Martinho do Campo, entre cavadores e a gente humilde da terra que o adorava. Vi-o muitas vezes passar na estrada, todo branco, minguado, com o burel, que nunca quiz largar, no fio, e os sapatos rotos. Era efectivamente formado em philosophia e direito, e até por vezes fôra convidado para lente da Universidade de Coimbra. Recusou sempre, recusou tudo, preferindo a convivencia com a gente do povo e com a natureza que o rodeava. Ha entre as duas povoações, S. Bento e S. Martinho, que ficam á beira da estrada da Povoa de Lanhoso, uma fonte que brota da raiz de uma arvore. Perto fica a ermida. Alli se costumava o santo homem sentar, horas e horas embebido nas suas meditações. Em que scismava? Decerto no passado longinquo…
Lembram-se d'uma narrativa de Alexandre Herculano, que se chama, creio eu, «O ultimo dia de convento?» Um frade chora ao deixar para sempre a cella caiada, onde passou a vida inteira. É só isto, afóra a ternura, as lagrimas, a prosa do grande escriptor. Assim D. Joaquim da Boa Morte contava tambem as ultimas horas de convento. Velhinho, tremulo, vivendo de esmolas, recolhido por caridade em casa de duas mulheres, que o cuidavam, nunca esqueceu o convento, a cella, o dia de separação. E, ao pé da arvore, junto ao fio limpido d'agua, lhe ouvi mais d'uma vez contar o que sofrera.
– E dos seus companheiros lembra-se? Teve mais tarde noticias?
E elle, com os olhos razos de lagrimas:
– Viveram ainda dispersos por esse mundo. Ha annos, ha muitos annos, recebi, dum d'elles um recado, esta palavra: – «Adeus!» Foi o ultimo!
Agora acompanhava-o sempre um rapazinho. Com a vida, ia-se-lhe desfeito o burel, rôtos os sapatos. Deixára de dizer missa, mas o povo d'aquelles logares, que é ingenuo e crente, consultava-o nas suas doenças e nos seus sofrimentos. É que D. Joaquim fazia milagres. Excusam de sorrir… O milagre é uma comunicação entre pessoas que têm radicada e viva esta força enorme: – a fé. D. Joaquim da Boa Morte curava as creaturas simples, as mulheres, as creanças e os homens da serra que o iam visitar, com boas palavras, e, quando muito, com alguns cachos de uvas, que elle proprio colhera e lhes distribuia, depois de benzidos.
Antes de morrer pediu que o enterrassem embrulhado na manta coçada que pertencera a sua mãe e que alli tinha no fundo da arca. Essa velha manta como eu lh'a invejo! Era n'um farrapo assim, com um resto de calor e de ternura, que eu queria ir aconchegado para a terra. Nem a eternidade das eternidades, nem o isolamento, nem o frio dos frios, conseguiriam jamais trespassal-a.
Que descance em paz. Quem escreve estas linhas deve-lhe uma das maiores, mais elevadas e puras impressões que tem recebido na vida. A sua grande figura só desaparece da terra, depois de ter feito muito bem e estancado muitas lagrimas.
Julho – 1903.O Silva Pinto a respeito do Cardia, que ha tres dias, em plena mocidade, meteu uma bala no coração:
– Eu não faço como elle, não me vou embora, porque tenho duas creanças, o Mario e o Raul. Era de certo a isto que o Manuel se referia ao escrever: «Não faço falta a ninguem». Isto atura-se lá a sangue frio e determinadamente! Matava-me para me ver livre d'estes bandalhos!
E os olhos enchem-se-lhe de lagrimas, arrasta a perna apegado á bengala, e sacode a cabelleira branca. Parece um trapo ameigado, mas resistente ainda: – Arre bandidos!
De repente, sem transição, põe-se a rir:
– Sabe de que me rio? Lembrou-me o Camillo, que tinha uma lingua viperina e dizia mal de toda a gente. Um dia em Seide falei-lhe n'este e naquelle, disse mal de todos. Por fim: – Sempre me refugio em Victor Hugo, para ver se você tambem diz mal d'elle…
E o mestre:
– Esse velho não era nada tolo!
Ri-se. Depois fica outra vez triste:
– Aquellas paginas de Hugo quando o avô vê entrar o neto ferido pela porta dentro!
*O Fialho descrevendo o Cardia, esse rapaz ingenuo, insinuante e espontaneo, que aos dezanove annos se lembra de estourar o coração com uma bala, por causa d'uma reles cantora de quarenta e dous annos – o Fialho diz:
– …era isto e aquillo e uma mão enorme atirada p'ra aqui e p'ra acolá a toda a gente, apertando a nossa.
O que nunca mais me esquece são aquelles olhos tristes e a bocca moça sempre a sorrir!..
Fevereiro – 1904.Hoje almoço em casa do Schwalbach com o Bulhão Pato, o Camara, João Chagas, Antonio Bandeira, etc. O Bulhão Pato é um homensinho secco e resistente, de cabeleira e pera branca – miniatura do alentado Pato caçador que todos nós imaginamos ao ler-lhe algumas paginas. Parte no dia 20 para S. Miguel, de passeio… Quando morrer desaparece com elle toda uma epocha: – Meu rapaz podes ter lido todos os philosophos, que se não tiveres sentimento… Minha mulher, uma velhinha lá fica… Não vae comigo, porque recolhemos em casa uma pequena pobre, pobrissima, e queremos-lhe como se fosse nossa filha. Sentamol-a á nossa meza… Bem sei que ha por ahi uns moços que dizem mal de mim. Não me importo. Quando vejo um rapaz de talento abro-lhe logo os braços.
No fim do almoço, beija a mão ás senhoras. Conviveu com o Herculano, ouviu-lhe dizer: – Isto dá vontade de morrer! «Que faria – accrescenta – se vivesse hoje!» – O Conservatorio lembra-lhe o Palmeirim – «que foi da minha creação» – É simpathico, vivo e cheira a outros tempos: conserva, como o linho guardado no fundo d'um armario, o perfume da maçã. E que contraste com os outros, com o Chagas, com o Schwalbach, sempre aflicto e sempre despreocupado, com o Antonio Bandeira, que, sob uma aparencia futil, é pratico como o diabo, e que conta que foi uma noite em Roma, com alguns portugueses, mulheres e guitarras, bater o fado para as ruinas do Colyseo! Depois, por blague, sustenta com o Chagas, que ninguem devia ter mais de duzentas e cincoenta grammas de principios.
Março – 1904.Encontrei hoje o Marcellino Mesquita: ventas largas, marcas de bexigas, barba com muitas brancas aparada rente, chapeu desabado, capinha curta e olho vivo. Tipo crestado do sol, materialista e secco.
– A gente quando chega a certa edade tem de se isolar para não viver n'uma perpetua irritação. Olhem agora se eu encontrava o Pequito ministro, o Pequito de quem a gente fazia troça em rapaz! E muitos outros, que aos quarenta annos começam a desafinar-nos os nervos… Vivo no Cartaxo, n'um descampado: a quinta fica entre duas estradas. Não passa lá ninguem… Leio, fumo, e trabalho. Tinha um moinho; primeiro acrescentei-lhe uma cozinha, depois um quarto: agora tenho lá uma casa. E já não posso viver sem o ruido das mós. O meu quarto fica mesmo por cima. D'aqui a oito dias, com as macieiras em flôr, aquillo é adoravel…
Abril – 1903.Vi o Marianno nas camaras. É um cadaver, com uma sobrecasaca riquissima de gola de veludo. Nunca phisionomia exprimiu maior cansaço, indiferença ou desprezo, a palpebra cahida, o olhar vazio de expressão. – Que me importa! que me importa!.. – Parece um morto, farto de sofrimento e de goso, e, sob aquella apparencia de sceptico raros se magoam como elle. Toda a vida tem sido ludibriado. Contam que a mulher passa horas a descompol-o. Elle, sentado, escreve tiras e tiras de papel, a tarefa do jornal, sem dizer palavra nem levantar a cabeça. D'uma vez chamou-lhe tudo quanto lhe veio á bocca, e elle inalteravel, curvado sobre os linguados, sem lhe dizer palavra… Por fim ella, desesperada, berrou-lhe:
– És um estupido!
Elle então parou, ergueu a cabeça, e muito calmo:
– Teem-me chamado tudo, mas estupido é a primeira vez!
E continuou a escrever.
Por fóra uma aparencia de sceptico, por dentro uma sensibilidade enorme. Anda sempre metido em complicações e negocios, em caminhos de ferro, em pedaços de Africa, bahia de Lobito, etc., e afinal não passa d'um sonhador que tem as propriedades de Azeitão hipothecadas em quatorze contos de reis.
Setembro – 1903.O Antonio José de Freitas, homem de lettras mediocre, é um conversador admiravel. Se conseguisse escrever como fala, e désse á prosa aquella vida que dá á palavra, seria um grande escriptor. Pequeno, branco, na ponta dos pés, sempre a segurar as lunetas, todo elle nervos:
– Dei-me muito com o Castello-Melhor. Um dia começou a imaginar que estava pobre, porque no Banco de Portugal lhe não quizeram, como sempre se fez, descontar uma lettra só com o nome d'elle. Disse ao Barros Gomes: – Vae beber da merda! – E sahiu furioso. D'ahi começou a imaginar que tinha cahido na pobreza e alugou o jardim para o circo Whytoine. Uma vez sahi com elle d'um baile pela madrugada e acompanhei-o a casa. – Sobe. – Tenho ainda que escrever para o Brazil… – Insistiu, subi – e eil-o a clamar no quarto: – Que diriam meus avós se vissem alli o circo e os palhaços!.. – Estava desesperado. Descompul-o.
Passaram-se annos e morreu de repente. Vestimol-o n'aquelle mesmo quarto, e, altas horas da noite, ouvimos, de repente, um clamor: era o circo Whytoine que ardia. E eu assisti ao espectaculo do cadaver, iluminado pelo clarão do incendio, alli onde o ouvira evocar com desespero os seus mortos. Foi tudo ao enterro. O povo abria alas, e quando chegamos ao cemiterio e quizemos pegar no caixão, veio de roldão uma chusma de cocheiros e vadios, que nol-o arrancaram das mãos, e, erguendo-o no alto dos braços, levaram-no até á cova…
*– O Eça usou toda a vida bentinhos ao pescoço. Vi-lhos eu, que dormi por diferentes vezes com elle no mesmo quarto…
*Depois fala no Resende:
– Se vivesse era decerto o chefe do partido conservador. Que homem encantador, polido e sceptico! E tinha uma poderosa ascendencia magnetica sobre nós todos. O medico, já quando elle estava muito mal, recomendou-lhe ares do mar. Passeava n'um bote no Tejo. Umas vezes ia eu com elle, outras o Soveral, e levavamos-lhe botijas com agua quente, porque sentia sempre um frio mortal. Estou a ver o Soveral, com uma botija em cada mão. O Rabecão, um jornal de caricaturas do tempo, disse que nós iamos emborrachar todas as noites para o rio. Muito nos rimos… Pois o Resende, atheu toda a vida, morreu como um crente.
Foi elle que se esmurrou com o Eça n'uma das piramides do Egypto. Nessa viagem ouviram ambos missa no tumulo de Jesus, em Jerusalem. O Eça cahiu logo de joelhos; quando levantou a cabeça para ver o quadro, dois ou trez mil peregrinos tinham como elle ajoelhado sob o mesmo impulso irresistivel: só a seu lado, de badine e sobretudo no braço, se conservava de pé, sem perder a serenidade nem a linha, um unico homem: o Resende.
*Os vencidos da vida, depois que se juntaram diziam mal uns dos outros. Não se podiam ver.
Março – 1900.Ha mezes que Junqueiro não aparecia na Praça, onde outrora era certo á noite, rodeado de esbirros, e discutindo politica ou arte com alguns amigos mais intimos. Eil-o agora de volta, depois de umas febres palustres apanhadas n'essa longinqua quinta que replanta de vinha lá para a Barca d'Alva.
Vem curioso. Teem por acaso os senhores noticia d'um Junqueiro adunco e janota, mephistophelico, com ditos em braza explodindo sobre o ultimo acontecimento, e conhecem talvez a lenda da casa de hospedes celebre da rua dos Retrozeiros, d'onde em tempos sahiram gritos subversivos, pamphletos, versos, theorias philosophicas, satyras e revistas do anno, e onde – consta dos archivos da policia – morou o proprio Diabo em pessoa, na intimidade do poeta?.. Lembram-se? Depois, n'outra phase da vida, viram-no talvez autoritario e feroz, com o mesmo perfil em bico d'aguia, sob um chapéo molle e gasto, atacar o velho Padre Eterno?.. Pois ahi o teem agora philosopho e christão. Parece um prégador socialista-tolstoiano, um santo cavador, de barba negra e inculta: traz ainda terra pegada nas mãos e uma roupa velha, a que só faltam alguns remendos cosidos á ultima hora… Usa uma camisola de lã e diz assim: – Eu não me visto: cubro-me.
Chega da Barca d'Alva, um terreno enorme lá para a raia, entre pantanos, que reuniu leira a leira, depois d'uma scena, que dava um capitulo á Balzac. É elle mesmo que a evoca em meia duzia de traços, e a gente vê logo d'um lado os cavadores tartamudos e hesitantes, do outro o Senhor Poeta, como elles lhe chamam, com um livro de cheques na algibeira, encafuando-os a todos na sala do cartorio: – Se chegam a concertar-se era uma discussão para seculos. Pediam-me uma fortuna! – Um a um compareceram diante do tabelião: – Quanto quer? Assigne! – E sahiam logo por outra porta.
Já pouco a pouco a lenda se forma, discutindo-se a nova thebaida, que d'aqui a annos será visitada como Valle de Lobos e Seide. Que procuram os nossos grandes escriptores, desde Herculano a Fialho, na natureza, que pouco nos dá em troca do muito que lhe damos? Afastar-se dos outros ou esquecer-se a si proprios?Talvez as arvores e os montes nos preparem melhor para o sepulchro e para o verme, ainda que eu julgue que não ha como um 6.º andar, com livros e papeis, e um cinematographo no rez do chão, para acabar com a vida.
Seria um curioso estudo aquelle que comparasse Valle de Lobos, Seide e a quinta de Junqueiro, a decoração escolhida por tres homens superiores – o fundo de tres grandes retratos. Na Barca tem o poeta uma casota de cão, com os muros ainda em osso, e uma varanda onde passeia todo o dia infatigavelmente. De quando em quando escreve na cal da parede versos ou contas. Seide, n'um cahir de tarde outomniça, lembra a alma de Camillo. Ha lá um calvario d'arvores decepadas que parecem forcas. Ha lá uma casa tragica, pintada d'amarello. Um ermo, que, a meia legoa da estrada, fica ao cabo do mundo, e que parece escolhido de proposito para esconder uma desgraça ou combinar um crime. Peor: ficou na casa abandonada, no ambito, nas pedras, alguma coisa daquella alma dilacerada de sceptico e de crente, mixto doloroso que só tinha como solução o infortunio. O que se ouve são risos ou gritos de dor? Depressa! depressa!.. Parece que elle anda ainda por aqui, sardonico e immenso, desgraçado e immenso. Valle de Lobos, se uma vez o avistaram, não emociona de uma forma toda diferente, e não diz bem com a alma de Herculano?.. Quanto a Junqueiro, a sua paizagem querida é indubitavelmente a trasmontana, grave, revolta e grandiosa como o seu genio.
Camillo não encontrou decerto resignação nas arvores, nem nos montes, porque, para o mestre, em toda a natureza só o homem existia: – Não ha na sua obra uma arvore, nota o poeta… – Nem Guerra Junqueiro por ora se isola. Está na lucta, com os seus livros, as suas theorias, a sua maneira suprema de discutir e de encarar os problemas do universo.
– Para viver na aldeia é preciso, diz elle, ser João Brandão ou S. Francisco d'Assis.
De forma que a Barca d'Alva não é bem uma thebaida para o poeta. Os senhores vão agora conhecel-o sob este aspecto novo – agricultor. A Barca é-lhe mais que um refugio: é (palavras que fazem bater o coração de todos os homens) o futuro dos seus filhos. E Junqueiro, agricultor, tem ainda genio: inventa e descobre. Quatrocentos cavadores desbravam-lhe a terra, que deve produzir um vinho magnifico. O mosquito propaga a febre. O jornaleiro macilento bate o queixo com sezões. Elle ordena, dirige e resolve as questões agricolas muito melhor que os lavradores da região, de quem diz:
– Plantam vinhas, como quem joga na batota – ao acaso!
Ouçam-no! Desfilam os jornaleiros, que adquirem logo uma vida extraordinaria, as boccas que não falam, a Maria Colhôna, que tem filhos de toda a gente, filhos para o Brazil, filhos para soldados, filhos para a desgraça, os sêres deformados e enormes, os tipos que se transformam em simbolos… Descobriu um novo processo para evitar que a enxertia, essa operação cirurgica, como elle lhe chama, falhe, e, sob as suas ordens, trabalham alguns centos de homens, que se encostam ás enxadas para ouvirem o Senhor Poeta… Não é raro vel-o subito, tempo humido, perigo para as vides, abalar para a quinta com saccos de sulphato. Adivinha, presente melhor a natureza que os sabios – e cria. Tudo o que toca toma sob as suas mãos um aspecto novo, tão certo é que os homem de genio, como quer Carlyle, são sempre superiores e ineditos.
E de que maneira paradoxal elle expõe as suas theorias! Nervoso, pequeno, calcando o lagedo da Praça, a mordiscar a ponta do charuto, que giganteas formas de sonho não vae creando aquella magica palavra!.. A sua phantasia é eminentemente decorativa.
– Sabem – dizia o poeta uma noite – sabem que scismo na fórma de transformar toda a agricultura? Acabaram-se os pobres, a fome, os annos tristes! Para o vinho, d'aqui em deante, não bastarão toneis como torres e para o pão arcas como predios. Uma carrada de bois será apenas suficiente para carregar uma abobora, e um simples cacho de uvas dará vinho para duzias de borrachões. Como? Aplicando ás arvores, ás vides, ás plantas emfim, o methodo de Brown-Séquard. O sabio dá a um organismo gasto uma vida assombrosa, injectando-lhe a vitalidade de coelhos. Calculem o resultado d'esse sistema aplicado na agricultura…
Um castanheiro dura seculos, tem uma vida extraordinaria. É mais que uma arvore – é uma força. Apodera-se dos montes. As suas raizes alastram, os seus ramos tocam no céo. Imagine que injecto polen de castanheiro n'uma vide… Obtenho logo uvas como as da Terra da Promissão. D'um pé de melancia tiro um fructo capaz de carregar um carro. Tres maçãs metem no fundo uma náu.
E eis, por uma noite de invernia, a natureza transfigurada, pelo poder da phantasia e do sonho. Flores são arvores abrindo lá em cima no céo em parasoes roxos; pinheiros transformam-se em montanhas; monstros erguem as suas corolas de veludo, e na verdade não passam de humildes flores bravias. Uma petala desaba com o fragor de penedos, e multidões sobre multidões sequiosas veem dessedentar-se n'este fructo colossal: – o morango. Ha que tempos que eu erro perdido n'esta floresta monstruosa de papoulas!..
Junqueiro na intimidade é prodigioso de genio, de imprevisto, de elevação. Vê os factos mais simples com um olhar que os engrandece. Assombra de pitoresco e de inedito. O homem de genio é, como todos os homens, filho da mesma lama, mas, por acaso, vão n'esse humus lagrimas, aguas correntes, detrictos de florestas, restos de nuvens e a emoção profunda da natureza. Por isso sabem tudo, sentem tudo… É pena que as suas conversas, os seus fragmentos, esses pedaços de sonho e de vida, atirados com febre, perdidos, e decerto esquecidos, se não possam juntar, porque dariam um dos aspectos mais extraordinarios do seu genio. Seria esse talvez o seu melhor livro. Assim, por exemplo, as cathedraes de Hespanha, onde Jesus está preso e a ferros, a explicação prodigiosa dos Christos de madeira – o Christo dos soldados, o dos ladrões, o dos cavadores, da sua sala de jantar, unicas obras d'arte de que não quer desfazer-se, e a sua philosophia, a maneira superior como encara o universo e ilumina o desconhecido…
Pois ahi o teem de novo no Porto, de barba hisurta, embrulhado n'um casaco coçado, com um ar iluminado de Santo. Direis que vae prégar ás multidões. Demais já ha annos que elle escrevia:
Tolstoi o meu sapateiro…E um dia, ao saber Camillo sceptico, Camillo com noites de sombrio desespero, palpando a coronha do revólver, não foi de proposito procural-o para lhe prégar Deus?
Era n'uma dessas tardes tragicas de Seide, de que o grande escriptor fala nos Serões. A natureza chorava revolvida: a acacia de Jorge batia-lhe devagarinho nos vidros. Quem é que o chama? Atormentado de dores, ouve vozes, vê phantasmas, e sae do horror com blasphemias e sarcasmos. Junqueiro encontra-o mergulhado na dolorosa tinta do crepusculo, com a pala com que escrevia sobre os olhos, absorto, calado, desesperado, o rosto marcado de dedadas, «esboçado n'uma argila côr de mel», segundo o retrato de Ricardo Jorge. Eu tinha-lhe medo… O poeta tenta arrancal-o ao negrume que o envolve: desenrola theorias, explicações, argumentos; ataca-o a fundo, persuade-o talvez… Já o julga abalado e convertido, quando d'essa figura só osso e dor, saem emfim estas palavras ironicas:
… – Sim, sim, Junqueiro, você convencia-me se eu não tivesse ainda no estomago, desde o almoço, tres bolinhos de bacalhau, que me estão aqui como tres Voltaires.
Março – 1904.Veiu a Lisboa acompanhar, por solidariedade, os lavradores do Douro, o poeta Guerra Junqueiro. É outro homem, que perdeu talvez em exterioridades mas ganhou em funda emoção. Tendo-se-lhe um dia deparado universaes interrogações no caminho; tendo encontrado frente a frente, ao meio da vida, idéas abaladoras, que só o homem de genio pode encarar sem o pavor e o deslumbramento que o grande mistério comunica – as raizes do universo – elle mudou de rumo, tão simplesmente como se praticasse o acto mais banal da existencia. Sendo já um dos maiores poetas da Europa – quiz ser tambem um santo… Durante annos procurou como Fausto o segredo da vida no fundo dos laboratorios. E n'outra phase do seu espirito decorativo tendo entrevisto, pelo poder do genio, novas veredas a tentar, seguiu-as, fazendo experiencias que a sciencia d'hoje plenamente confirma.