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A Revolução Portugueza: O 5 de Outubro (Lisboa 1910)
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Jorge de Abreu

A Revolução Portugueza: O 5 de Outubro (Lisboa 1910)

Falando aos leitores

De todos os relatos que vieram á tona da imprensa portugueza sobre episodios do movimento que implantou a Republica no nosso paiz, conclue-se nitidamente esta coisa curiosa: raros foram os pontos do programma revolucionario que se cumpriram á risca. No emtanto, o movimento triumphou. As longas horas de espectativa dolorosa, que uns passaram a desafiar a morte e outros a contas com a torturante ignorancia da verdade, desfecharam na manhã de 5 de outubro em delirante estralejar da victoria – alcançada simultaneamente pelo esforço heroico de meia duzia de patriotas e a inacção de centenares de descrentes. O movimento triumphou apesar de tudo: da ausencia, no momento supremo, de elementos de coordenação revolucionaria, do desanimo que bem cedo invadiu quasi a totalidade dos dirigentes da campanha, da falta sensivel de armamento destinado aos carbonários e outros civis.

Na madrugada de 4 de outubro, á hora em que um troço de populares e de soldados arrastava pela Rotunda o enthusiasmo dos primeiros momentos de combate bem succedido, ainda n'uma casa dos lados da Sé duas creaturas devotadissimas fabricavam bombas que um emissario da Revolução d'ahi a pouco devia ir buscar. Mas o emissario não appareceu e um dos «fabricantes» sahiu á rua a inteirar-se da situação. Cahiu logo nas garras da policia… E como este, muitos outros incidentes occorreram na madrugada celebre, mais proprios, sem duvida, a embaraçar a eclosão do triumpho do que a facilital-a.

É que se do lado dos revolucionarios havia quem supportasse, com fé inquebrantavel, todos os obstaculos – e não poucos – que surgiram ante o seu designio, do lado do inimigo a convicção da perda irreparavel da monarchia enraizara-se profundamente, abalando, com diminutas excepções, as consciencias as mais empedernidas. Parece que, mal soaram no silencio tragico da noite os primeiros tiros de canhão, a maioria das creaturas, ás quaes incumbia a missão de luctar pelo regimen extincto, teve a visão clara da inutilidade do seu esforço 1.

A influencia moral desprendida do acto revolucionario, já em precipitado desenrolar, ajudou muito a conquista da liberdade. A presença da artilharia no campo revoltoso, a immediata adhesão do «Adamastor» e do «S. Rafael» ao movimento, o bombardeamento do paço, a fuga do rei e a derrota das baterias de Queluz contribuiram innegavelmente, e em larga escala, para assegurar a victoria da Republica; mas, a par d'esses factores, não é licito esquecer a molleza, a inercia dos que constituiam o inimigo, uma e outra derivadas d'um scepticismo que a monarchia, sem dar por isso, inspirava desde muito aos proprios que a serviam.

É cedo, porém, para entrarmos na enumeração e apreciação d'esses factores. O nosso proposito, narrando o que vae lêr-se, é fixar, com o melhor methodo possivel, os pormenores da sacudidela feliz que destruiu a monarchia portugueza, as «étapes» do verdadeiro sonho durante o qual se desmoronou a dynastia dos Braganças. É um pouco a historia da organisação revolucionaria seguida logicamente do relatorio da batalha de 4 e 5 de outubro. Aqui e ali resaltarão diversas notas confiadas por authenticos conspiradores ao signatario d'estas linhas e que, se não modificam a impressão geral do quadro da revolta que os leitores conhecem, emprestam-lhe, comtudo, «nuances» absolutamente ineditas que é justo e necessario pôr em lettra redonda.

A historia da organisação revolucionaria – sabemol-o perfeitamente – escreveram-na tres homens durante o periodo febril da sua preparação. Um d'elles, Miguel Bombarda, destruiu, pouco antes de morrer, o capitulo mais interessante, o que delineava, em traços symbolicos, todo o plano de ataque ás instituições monarchicas. Liam-se n'esse capitulo a força imponente dos elementos revolucionarios e a sua distribuição pelos pontos vulneraveis; era o balanço, lucidissimo para os iniciados e inintelligivel para os profanos, do grande exercito democratico que se aprestara a investir contra a realeza. Miguel Bombarda destruiu-o receioso de que viesse a cahir, apoz a sua morte, em poder do inimigo.

O outro capitulo escreveu-o João Chagas ao sabor da opportunidade, em minusculos pedaços de papel, nas margens livres de cartas e telegramas e até em bilhetes de visita. Era o resumo fidelissimo das assembleias revolucionarias que antecederam o movimento, as «actas» das reuniões secretas de militares, o registo palpitante das adhesões que dia a dia faziam engrossar a legião republicana. Esse capitulo não foi destruido. Atravessou o periodo mais acceso da lucta escondido n'um chapéu feminino – o chapeu da esposa do illustre pamphletario – e só reviu a luz do dia quando o governo provisorio já tinha iniciado a sua obra de reorganisação politica.

Ainda outro capitulo – o da implantação da Republica, lista dos actos, das determinações que deviam succeder immediatamente á consagração solemne do triumpho. Esse esteve, por instantes, condemnado a desapparecer nas profundezas d'um syphão, transitou depois de algibeira para algibeira e por fim encontrou refugio seguro na redacção d'um jornal, a «Lucta»… a dois passos da policia.

Qualquer d'esses capitulos, publicado isoladamente despertaria um real interesse e daria margem não só a variadissimos commentarios como a uma legitima exclamação de não menos legitimo espanto. Mas a nossa pretensão é mais modesta. Na leitura do que vae seguir-se, encontrar-se-hão simplesmente os elementos aproveitaveis á formação d'um quarto capitulo, meramente subsidiario, não traçado por espirito de revolucionario – que o não fomos – mas annotado por quem, durante o periodo de incerteza, limitou a sua acção pessoal a tomar apontamentos, a ouvir informações, a apreciar incidentes, a defrontar muita decisão, muita coragem, e, sobretudo muito medo, muito pavor. De mistura com isto, repetimos, apparecerão os depoimentos dos revolucionarios authenticos, dos que jogaram a vida n'uma cartada de exito.

J. DE A.

CAPITULO I

Da perspicacia dos espiões ao serviço do antigo regimen

A policia, que o defunto juizo de instrucção criminal empregava especialmente na espionagem dos chamados agitadores da opinião, recebeu um bello dia do final do reinado de D. Carlos o encargo de averiguar o que projectava de sensacional o partido republicano, que uma denuncia affirmava mover-se activamente n'uma conspiração surda, mas tremenda. Os bufos puzeram-se immediatamente em campo e, dentro de curto prazo, davam ao chefe conta pormenorisada da sua missão. O relatorio d'essa espionagem, que pretendia, se não estamos em erro, elucidar policialmente o trama revolucionario do 28 de janeiro, é a documentação mais perfeita sobre a incapacidade dos que essa mesma espionagem exerceram. Um dos bufos diz pouco mais ou menos isto:

Na noite de… ás… horas, vi entrar na casa n.º… da rua de… um individuo magro, trigueiro, nariz comprido e de oculos, que se me constou ser empregado d'um judeu lá para os lados de… Sahiu da mesma casa ás… horas e tambem se me constou que assistiu com mais vinte e tantos individuos a uma reunião secreta.

Evidentemente, no relatorio do espião, faltam os dados essenciaes. É uma cousa vaga, que nenhum chefe de policia podia acceitar de boa fé para d'ella concluir que o revolucionario assim visado era um dos mais solicitos republicanos de Alcantara. Mas servia ao momento para justificar a verba ministerial applicada a esta e outras diligencias e tudo conjugado, tudo espremido em volta d'outra informação policial que descrevia um passeio de propaganda nocturna dado pelo sr. dr. Antonio José de Almeida ás proximidades d'um cemiterio – onde conferenciara com soldados e marinheiros – deu em resultado o supremo dirigente da espionagem enveredar pelo caminho da phantasia, já que a verdade lhe não era nitidamente facultada pelos vãos esforços dos seus subordinados.

Houve um momento em que a Parreirinha – ou a Bastilha, como quizerem – suou em bica para achar o fio do complot. Pensou-se mesmo em peitar uma creatura que se adivinhava intimamente ligada ao movimento revolucionario e obter d'ella, com a promessa deslumbrante de farta recompensa, as informações que os bufos não conseguiam arranjar. Apertou-se a rede da espionagem, principalmente sobre o rasto e os menores gestos dos drs. Antonio José de Almeida e Affonso Costa e João Chagas. Certa noite, o ex-ministro do interior, dirigindo-se para um ponto da estrada da circumvalação onde projectava encontrar-se com elementos republicanos, foi seguido por um bufo que tinha jurado aos seus deuses obter, custasse o que custasse, a revelação completa d'essa conferencia secreta. Trabalho inutil. A meio da viagem, o bufo perdeu a pista do illustre caudilho da democracia e só logrou reavistal-o quando elle já regressava, tranquilo e risonho, ao seu consultorio medico. Pouco bastou para a Bastilha mandar enforcar o espião inhabil…

Em meio do seu desespero e da sua ignorancia, a policia teve um sobresalto pavoroso. Outra denuncia, d'esta vez bem recheiada de pormenores, assignalava ao juizo de instrucção criminal a organisação d'um complot, cujo objectivo era não só a eliminação do dictador João Franco, que se propunha á viva força consolidar e engrandecer o poder real, mas o de derruir, n'um golpe de audacia, as instituições monarchicas. Dizia-se que n'esta altura da conspiração os republicanos não contavam simplesmente com o apoio e a collaboração dos dissidentes, que, tendo começado por lançar a semente da revolta politica no cavaco animado d'uma pastelaria da Avenida, já tratavam a serio d'uma mudança de regimen. Dizia-se tambem que os chefes em evidencia, os organisadores do movimento revolucionario – Antonio José de Almeida, Affonso Costa e João Chagas – tinham procurado o auxilio d'uma parte dos libertarios, homens de acção energica, dispondo de meios de combate essenciaes á dispersão, no momento propicio, das forças defensoras da monarchia e que essa fracção do partido anarchista portuguez promettera aos republicanos uma parcella consideravel do seu esforço.

A bomba, o engenho destruidor, que é o pezadelo do que se convencionou denominar uma sociedade regularmente constituida, passou então a ser a sombra espectral das regiões policiaes. Descobrir a fabrica do explosivo, desvendar o recanto solitario onde, dia a dia, homens sem medo, sem hesitações, debruçados carinhosamente sobre pedaços de metal, apparentemente insignificantes, jogavam a vida com um desprezo titanico, era o sonho dourado do Cyro – o Cyro, que se gabava de conhecer todos os anarchistas militantes – e d'uma longa theoria de famintos, que espionavam para terem que comer.

Dois accidentes de trabalho, occorridos com pequeno intervallo um do outro, ergueram aos olhos coruscantes da policia uma pontinha do veu. O primeiro deu-se n'uma casa da rua de Santo Antonio á Estrella. Um operario do Arsenal de Marinha e o professor de ensino livre Bettencourt foram as victimas da explosão d'uma bomba – explosão provocada pela imprudencia do operario ao tentar soldar o apparelho ao fogo d'uma lampada. O segundo accidente alarmou a cidade na tarde d'um domingo sombrio. As campainhas dos telephones vibraram apressadamente communicando ás redacções dos jornaes a noticia do facto. Emquanto, a poucos passos, na Avenida, uma banda regimental deliciava centenares de pessoas descuidosas e a garridice feminina animava o quadro d'uns tons voluptuosos, alguns revolucionarios, encafuados n'um modesto quarto de estudante, na rua do Carrião, preparavam tranquillamente o exterminio da guarda pretoriana. De repente, um estrondo formidavel sobresaltou a visinhança. Viu-se sahir da janella d'esse compartimento acanhado e inexpressivo uma lingua de fogo e d'ahi a momentos uns transeuntes mais corajosos, um bombeiro voluntario e um policia defrontavam o espectaculo commovedor de dois cadaveres mutilados em meio d'um armazem de bombas.

O Cyro, prevenido do facto, não tardou a apparecer no local, esbofando-se por apprehender o alcance de tamanha revelação. Os nomes dos dois mortos não figuravam na sua lista de anarchistas; o do preso (Aquilino Ribeiro) que a judiciaria já fizera conduzir á esquadra proxima e que evitara, n'um gesto de gavroche, o ser apanhado pela machina photographica d'um reporter, tambem lhe não soava familiarmente ao ouvido. O caso era de embatucar… Os outros chefes ao serviço do juizo de instrucção perdiam-se egualmente em conjecturas. Adivinhavam no desastre qualquer coisa de muito tragico e de muito ameaçador para a segurança do regimen vigente, mas não ligavam a occorrencia a outros incidentes de menor importancia, que, todos arrumados methodicamente, poderiam talvez fornecer uma indicação preciosa.

Ao cahir da noite, quando a noticia do facto se divulgou pela Baixa e pelos centros de palestra, o espanto e o terror invadiram e fizeram emmudecer muita gente. A policia ainda tentou, com um truc velho, projectar alguma luz no inesperado acontecimento. Sem perda de tempo, levou á Morgue o estudante preso no local da explosão e, collocando-o em face dos corpos esphacelados dos seus dois camaradas, forcejou por arrancar-lhe uma confissão plena. O sobrevivente do desastre sensibilisou-se, é certo, á vista dos cadaveres, mas as lagrimas que no momento derramou não lhe despegaram dos labios a denuncia apetecida. O truc não surtiu effeito.

Restava applicar á imprensa a mordaça do estylo. O dictador João Franco fel-o sem rebuço, auxiliado por alguns jornaes que, longe de reagirem contra esse costume intoleravel de consentir que o chefe do governo ditasse pelo telephone as poucas phrases em que a noticia de qualquer facto podia ser transmittida ao publico, se apressaram a recordar-lhe a existencia d'uma lei, que era feroz armadilha para insubmissos. Quer dizer: esses jornaes mettiam complacentemente, e até com certo jubilo, o pescoço na canga da oppressão. Ainda não esquecemos o dialogo telephonico travado na noite d'esse domingo melancholico entre o presidente do conselho e a redacção d'um diario de Lisboa:

– V. ex.ª consente pormenores da explosão? perguntava o jornal.

– Não tenho nada com isso, respondia o primeiro ministro de D. Carlos… os senhores bem sabem o que lhes compete fazer.

– Mas a lei de 13 de fevereiro?..

– Ah! sim, está em vigor…

– E… v. ex.ª applica-a?

– Naturalmente.

– Mas o publico precisa ser informado…

– Bem sei… mas eu nada tenho com isso… mandem ao governo civil. Vou recommendar para ali que forneçam a todos os jornaes uma nota resumida do caso.

E assim succedeu. Uma hora depois, os reporters que tinham ido ao bebedouro commum da informação officiosa regressavam com cinco linhas – cinco linhas apenas, não exageramos – em que se registava, n'uma linguagem quasi sybillina, a descoberta, por meio do desastre, do fabrico de explosivos para fins manifestamente criminosos. Uns jornaes publicaram essa nota na integra, sem resalvarem a proveniencia; outros, mais escrupulosos, precederam-na d'outras linhas que a reduziam ao seu justo valor; um unico teve a coragem de transgredir as ordens do dictador, noticiando ao mesmo passo o nome d'uma das victimas da explosão!..

O relato pormenorisado do acontecimento com as competentes gravuras (photographias dos cadaveres na Morgue, croquis do interior do quarto de estudante e a reconstituição graphica da scena commovente) foi no dia immediato exportado para o Brazil e inserto n'uma folha do Rio, afim de que se não perdesse totalmente o trabalho do noticiarista, a presteza do photographo e a habilidade do desenhador.

CAPITULO II

Um «accidente de trabalho» e uma evasão romanesca

O proprio Aquilino Ribeiro – que, diga-se de passagem, é um intellectual – descreveu mais tarde ao signatario d'estas narrativas como occorrera o desastre da rua do Carrião.

– Aquillo foi assim – contou elle. Eu nunca tinha feito bombas, apesar das minhas convicções já me terem enfileirado n'um grupo libertario. Sabia que n'essa occasião, e mercê da preparação do movimento revolucionario do 28 de janeiro, esse fabrico se alargara a diversos pontos de Lisboa e mesmo fóra de Lisboa e dava-me intimamente com diversos militantes e propagandistas da acção directa. Tinha até cooperado na organisação do ataque aos quarteis e ás forças da municipal, indo com Alfredo Costa e outros alugar quartos em varios pontos estrategicos, d'onde projectavamos dynamitar essa legião fiel ao regimen monarchico. Um bello dia o dr. Gonçalves Lopes pediu-me para levar ao meu quarto dois caixotes com bombas. Hesitei, observando-lhe que a dona da casa podia attentar no facto, mas elle desvaneceu-me todos os receios, explicando-me que necessitava absolutamente transformar o meu aposento n'um deposito eventual de explosivos.

«Combinou-se o transporte dos caixotes do consultorio do dr. Gonçalves Lopes, na rua do Ouro, para ali, mas, ou porque elle não me pormenorisasse bem como a coisa devia ser feita, ou por outro motivo de que me não recordo, o moço incumbido de os levar á rua do Carrião teve de arripiar caminho e voltou com os caixotes para o consultorio. Grande pasmo do dr. Gonçalves Lopes e, no dia seguinte, após uma breve explicação que eu e elle tivemos no Suisso, os caixotes (cada um pesando approximadamente sessenta kilos) tornaram a emprehender a viagem para o meu quarto. Desde então, passei tambem a collaborar regularmente no fabrico de explosivos.

«Vendo o dr. Gonçalves Lopes e o commerciante Belmonte, seu companheiro na manipulação dos engenhos, carregarem umas tantas bombas, aprendi facilmente a operação e no domingo do desastre em que nos reuniramos para a continuar já me comportava ao lado de ambos como um fabricante experimentado. Tinhamos carregado umas sessenta ou oitenta e faltava ultimar muitas mais. O dr. Gonçalves Lopes parou a descançar e disse-me:

« – Você agora podia incumbir-se do resto…

«Eu não respondi de prompto e, ficando assente que á noite recomeçariamos a operação, dispuzemo-nos, no emtanto, a carregar mais tres para dar por finda a tarefa da tarde. Cada um de nós pegou n'uma bomba vasia. Na minha frente estava o dr. Gonçalves Lopes e mais adeante o seu companheiro. O dr. Gonçalves Lopes, descuidando-se um pouco nas precauções que era de uso tomar em taes circumstancias, principiou a martellar com força no engenho que tinha na mão. Ainda lhe recommendei prudencia; mas elle sorriu-se, incredulo, do meu receio, e continuou o trabalho. De repente, um grande estrondo atordoou-me sensivelmente. A bomba do dr. Gonçalves Lopes explodira. Vi-o cahir esphacelado, salpicando-me de sangue e vi o commerciante Belmonte avançar para mim, soltando um grito como o d'um animal ferido de morte. Acolhi-o nos braços, mas tive que o largar logo a seguir porque já agonisava.

«Foi um instante de dolorosissima atrapalhação. Dirigi-me a outro quarto a lavar-me, porque estava negro como um carvoeiro e quando voltei ao meu aposento pensei em fugir. Mas, como? O meu chapeu parecia um crivo, o vestuario não inspirava confiança, as mãos e a cara denunciavam-me, trahiam-me… Passeei uns segundos pelo quarto sem saber o que fazer e quando percebi que gente estranha subia a escada, a inquirir do estrondo, fui estupidamente esconder-me debaixo da cama. Os primeiros minutos passei-os quieto e calado n'esse refugio d'occasião. Mas, logo que ouvi a curta distancia os commentarios da policia e as interrogações dos reporters, longe de procurar misturar-me com o meu amigo e os nossos collegas – Aquilino Ribeiro era n'esse tempo collaborador da Vanguarda– comecei a agitar-me e despertei a attenção do chefe Ferreira. Estava apanhado.

– Levaram-me para o governo civil e depois á Morgue. Assediaram-me de interrogatorios. Pouco antes, com a explosão da rua de Santo Antonio, á Estrella, tinham sido presas, por suspeitas, umas cem pessoas. Com a da rua do Carrião, apesar da extensão enorme do fabrico das bombas em Lisboa, restringi tanto o cerco da curiosidade policial, que o chefe Ferreira apenas conseguiu incommodar um pobre homem em casa de quem foi encontrado um cartão de visita com o meu nome. Depois; estive dois mezes incommunicavel, durante os quaes só me queixei d'uma coisa: da má qualidade da comida fornecida aos presos.

«Durante o periodo da incommunicabilidade procurei, naturalmente, libertar-me da prisão. Fiz para isso, com a maior paciencia, variados preparativos. Aproveitei o azeite que condimentava as minhas rações de bacalhau para amaciar os gonzos e os ferrolhos do carcere. Com o miolo de pão fiz prodigios de habilidade e de disfarce. Em summa, quando me levantaram a incommunicabilidade já tinha quasi tudo organisado para a evasão.

«Uns amigos prometteram-me auxilio. Era necessario arranjar um automovel para me receber á sahida da esquadra do Caminho Novo e transportar-me a logar seguro. Creio, porém, que os donos de dois d'esses vehiculos, aos quaes os meus amigos se dirigiram, os não puderam dispensar e uma bella noite, quando consegui fugir do carcere, encontrei-me na rua, só, exposto a uma chuva torrencial que me transformava n'um pintainho. Uma vez transposto o muro do Posto de Desinfecção, contiguo á esquadra e tendo-me deixado escorregar por uma guarita onde uns operarios guardavam a ferramenta, atrevi-me a passar deante da sentinella da esquadra, como se fôra um simples transeunte que recolhia a casa a deshoras.

«Fui á Estephania á procura d'um conhecido. Bati. Ninguem me respondeu. Ou melhor, ninguem me abriu a porta. No trajecto, até lá, sempre debaixo de agua, encontrei uma carruagem particular, vazia, mas o cocheiro, quando lhe fallei em transportar-me, olhou-me de soslaio e respondeu com uma evasiva. Que admira! A barba hirsuta dava-me certamente um aspecto horrivel. Tinha sobre o casaco uma blusa com bolsos collados a miolo de pão… As botas e as calças destilavam immensa lama… Da Estephania dirigi-me á Praça da Figueira. Deram as oito da manhã e calculei que a essa hora a policia, sabendo da minha fuga, já andasse pressurosa no encalço do evadido. Na Praça comprei um molho de hortaliça e tratei de occultar o rosto o mais possivel. Fui a casa do Alfredo Costa, á rua dos Retrozeiros. Dormia ainda. Fui a outra casa. A pessoa que a habitava aconselhou-me o esconderijo n'outro ponto. Não acceitei o conselho e encafuei-me na taberna do João do Grão, na travessa da Palha.

«Ahi reparei as forças perdidas com essa noitada de anciedade, de cançaço e de chuva, comendo meia desfeita e tomando um litro de vinho. Momentos depois, apparecia-me então o Alfredo Costa e eu entrava para uma casa da maior confiança, conservando-me em Lisboa, escondido da policia, durante dois mezes…»

Preso um dos fabricantes de bombas, a policia volveu os olhos para todos os amigos de Aquilino Ribeiro, calculando ser-lhe relativamente facil capturar, acto continuo, o que ella appelidava os cumplices das vitimas. Um dos alvejados pela perseguição da Bastilha, o dr. Alberto Costa, tendo-se injustamente convencido de que o preso falára, abalou para Hespanha. Deu-se a fuga de outros revolucionarios, as diligencias policiaes arrastaram-se mollemente e com evidente desorientação e, apezar de que o desasocego dos conspiradores era de molde a infundir suspeitas aos menos precavidos, ainda d'esta vez a espionagem do juizo de instrucção não logrou desenrolar o fio da meada. E que admira, se no periodo de descuidosa imprevidencia em que o dr. Alberto Costa passeiava nas ruas de Lisboa com uma maleta cheia de bombas e se divertia a bailar, sobre uma cama que occultava uma caixa d'esses engenhos, os Argus da Parreirinha nem por palpite o encaravam com desconfiança!..

O fabrico de explosivos não occupava simplesmente meia duzia de pessoas. Absorvia os cuidados de diversos grupos. Generalisara-se por uma fórma assombrosa e, dentro e fóra de Lisboa, trabalhava-se afincadamente em centenas de apparelhos destruidores. Cada dia que passava sobre as arranhadelas da dictadura via surgir para a lucta novos combatentes e novas dedicações. Então, não era só o partido republicano que protestava contra o existente; os seus clamores de revolta echoavam na consciencia de muitos monarchicos; a legião dos que, na primeira hora de enganadora miragem, tinham acolhído o governo João Franco como o advento de um Messias, esboroava-se a olhos vistos. A atmosphera em volta do throno carregava-se progressivamente de indignação, de odio, de intranquillidade e, a não ser D. Carlos, que nunca se sensibilisára com a agitação da massa popular, e o ministerio franquista, que suppunha governar a contento do paiz, todos os outros elementos argamassados pelos favores do regimen sentiam, palpavam, futuravam, com maior ou menor largueza de vistas, a derrocada imminente.

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