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A agua profunda
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Год издания: 2017
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Paul Bourget

A agua profunda

I

Ha certos proverbios que, passando d'um paiz para outro, tomam uma physionomia tão differente, que bastaria uma tal variação para provar que os caracteres nacionais se conservam na realidade radicalmente distinctos e irreductiveis.

O francez, por exemplo, diz, a respeito d'um homem feliz «que nasceu impellicado», e o inglez «que nasceu com uma colher de prata na bocca».

Dois rifões, duas raças, dois destinos: d'um lado um povo voluvel, espirituoso, elegante, amando a galanteria, apaixonado pelo prazer e naturalmente divertido; – do outro lado uma nação avida, dominada pelo positivo e que até no luxo quer o conforto.

São aquelles dois traços caracteristicos que resaltam d'um primeiro proverbio; vejamos outro.

D'alguem muito circumspecto diz o francez: «não ha peor agua do que a agua quieta», o italiano: «as aguas tranquillas destroem as pontes» e o inglez: «as aguas tranquillas correm profundas». E os trez teem razão.

O francez é tão expansivo e sociavel, que uma alegria que não communique não é completa; um pesar que guarde no intimo do seu coração é um dobrado pesar. Julga os outros por si, e, na presença d'alguem menos expansivo, está desconfiado.

O italiano, por natureza reflectido e previsto, possue a desconfiança no mais elevado grau. Vê na reserva uma ameaça, no silencio uma cilada, é que Machiavel era de Florença, do paiz aonde a astucia é sempre acompanhada da gravidade, e o machiavellismo fez carreira. Orgulhar-se-ha com a bella allegoria que pinte uma arca de Noé, resplandecente de luz, sobre o glauco Arno ou o Tibre flávo.

Nos inglezes o espirito realista é acompanhado da mais tacita e meditativa melancolia.

Observae uma carta do seu paiz e vereis como Manchester está nas proximidades dos lagos e do condado de Wordsworth.

A cada momento empregam um aphorismo de voracidade rapace. Teem comtudo uma graça rude que não perdem ainda mesmo nos momentos mais criticos. E a verdade é que o Anglo-Saxão se nos apresenta na sua historia e na sua litteratura: duramente brutal, quando é brutal e excessivamente sonhador, quando é sonhador.

Estas duas pequenas phrases encerram uma grande verdade.

É, porém, justo que se diga que os casos de psychologia ethnica teem innumeras excepções.

A prova está na recordação d'esse poetico proverbio inglez sobre as «aguas profundas» que o meu espirito me sugeriu – ó ironia – no proprio momento em que pretendo contar uma aventura parisiense, succedida no outomno passado, e cuja heroina não tem, com certeza, nas veias a minima gotta de sangue britanico. E, comtudo, nenhuma imagem me parece resumir melhor a impressão que em mim produziu esse pequeno drama sentimental, quando me foi referido, em intima confidencia, cujo mysterio respeitarei.

Tendo-se desenrolado essa tragedia intima, sem escandalo, entre um pequeno numero de personagens, bastará uma simples troca de nomes para conservar um incognito cuja necessidade o leitor reconhecerá certamente, desde que admitta, apezar da singularidade de certos detalhes, que tudo n'ella é verdadeiro.

Terminada a narração, comprehenderá a leitora, se se interessou pelos segredos da delicada mulher cuja historia se faz na Agua Profunda, que irresistivel coincidencia compelliu o historiador d'este episodio romanesco a inscrever na sua primeira pagina a synthese do velho proverbio?

Encontrará tambem, casualmente, uma especie de symbolo no contraste frisante entre o cunho parisiense dos logares e do meio onde se desenrolaram os incidentes d'esta chronica de costumes, e a visão do que se passa além da Mancha, avocada ao espirito pelo aphorismo inglez: a corrente obscura e silenciosa d'um rio da Irlanda por entre os seus prados, a immobilidade vaporosa d'um lago da Escocia na solidão das suas montanhas vestidas de urze?

Ainda mesmo que ella seja no fundo d'uma sensibilidade affectuosa pouco communicativa e a escrava d'esses deveres de severidade, d'esses deleterios prazeres a que obriga a infelicidade sempre cubiçada d'uma situação em evidencia, aquelle contraste não é o de toda a sua existencia?

Preferia, talvez, em volta das suas emoções, das suas esperanças, dos seus pezares, um quadro que lhe recordasse a sua propria vida: a prova d'um vestido em casa d'uma modista celebre; visitas em Monceau, os Campos-Elysios, o arrabalde de S. Germano; a volta para casa; a mudança de vestuario; jantar fóra ou receber; e acabar o dia em qualquer reunião com pretensões a elegante, ou no camarote de algum theatro em que se exhibam peças para fazer rir.

É forçoso, porém, que estas luctas quasi mortiferas do coração e do meio tenham uma especie de attractivo doentio, disfarçado, mas bem intenso, e que correspondam, nas sensibilidades mais apuradas, a uma inexplicavel necessidade de emoções violentas.

Só assim se explica que Paris e a sua sociedade – ou melhor dizendo – a mescla, phantasticamente formada, que constitue o seu grande mundo – Paris, então, e as suas sociedades (é necessario o plural) continuem a attrahir, a prender um sem numero de pessoas que, pela sua fortuna, são inteiramente livres e se encontram em condições de se libertar d'um tal meio.

Amaldiçoam, quotidianamente, o captiveiro e a sua atmosphera moral e não se vão embora, como se não se podesse viver n'outra parte.

A anecdota aqui referida, provará effectivamente como esta cidade, que realisa a cada momento a celebre phrase do Imperador sobre o impossivel encerra de tudo na sua decoração estravagante, até grandes almas…

I

Seguindo uma pista

Disse já que este episodio datava do outomno passado; mas teria sido muito mais correcto, asseverando que foi n'essa epocha que se deu o seu epilogo. Porque a parte dramatica da aventura não foi, como acontece quasi sempre, mais do que a explosão d'uma mina ha muito tempo preparada pelos acontecimentos. É possivel tambem que, apezar de tudo, se não fosse um simples acaso, e bem inesperado, nunca ella tivesse rebentado, como acontece ainda maior numero de vezes.

É assim a vida humana: o inevitavel e o imprevisto acham-se n'ella tão intimamente ligados e confundidos, que ao observarmos attentamente essa sequencia de causas e de effeitos, sente-se uma inexprimivel impressão de logica e de incoherencia, na qual só a crença n'uma suprema razão de todas as coisas nos permitte presentir uma acção providencial.

Mas é este um ponto de vista generico e que a nossa philosophia concebe depois de demorada observação; tal philosophia porem é impotente, quando procura interpretar da mesma maneira acontecimentos d'uma radical insignificancia: o que, por exemplo, precipita a tragedia que vou contar, a simples visita d'uma senhora a um armazem de novidades.

A formosa dama de que se trata e que chamarei, conservando-lhe o titulo – este detalhe é de pequena importancia – a baroneza de Node, estava muito burguezmente apreçando tapeçarias. Ouvira dizer que o grande armazem em questão havia recebido um variado sortimento de tapetes do Oriente. Tinha, por isso, ido ali, no principio d'uma tarde de novembro, com a esperança de que áquella hora, por ser a de menor concorrencia, melhor poderia realisar as suas compras.

Effectuadas estas, dirigia-se para a sahida, com passo lento, deleitando o olhar, mesmo contra sua vontade, com a observação d'esses milhares de objectos de tão differentes proveniencias e para tão diversos usos, amontoados no balcão, pendurados nas paredes, empilhados nas estantes e dispostos nas vitrines. O quadro é sufficientemente conhecido para que mereça a pena reproduzil-o.

A joven baroneza tinha entrado no armazem ás duas horas, não eram ainda tres e já essa multidão, que desejava evitar, começava a envolvel-a por todos os lados.

O vasto compartimento regorgitava com esse formidavel affluxo feminino que parece dar razão aos prophetas da democracia. O sonho da igualdade universal não se acha realisado completamente no dedalo d'um semilhante imporio? Não se encontram ali confundidas todas as classes n'uma mistura estravagante? A modesta esposa do funccionario com mil e oitocentos francos de vencimento acotovela a consorte do judeu financeiro, cujos lucros no jogo de fundos se elevam, em 31 de dezembro, a meio milhão. A provinciana, para a qual a viagem a Paris constitue um acontecimento, passa rente á estrangeira que vae de São Petersburgo ao Cairo e de Cannes a New-York com a mesma facilidade com que ella veio do seu hotel da praça Vendôme. A mundana, cujo automovel de grandes dimensões a aguarda á porta, crusa-se com o estudante do bairro Latino que caminha a pé ao longo das ruas, para não desfalcar o modesto orçamento do seu viver de bohemio, com a quantia de sessenta centimos que pagaria n'um tramway.

O colossal bazar não constitue, pois, uma tentação para todos os desejos, uma occasião propicia para occorrer a todas as faltas?

Mesmo uma grande senhora, que nos ultimos cincoenta annos só tenha tido fornecedores especiaes, recorre por fim a esse banal e commodo mercado, e transige em ir passear até lá, como fez a baroneza de Node, a despeito de aquella promiscuidade forçada, com aquelle seu todo aristocratico, patricio, que se não imita e que se não define. Sabe-se apenas quem o possue.

É uma maneira particular de olhar, de andar, um porte caracteristico, onde ha a timidez e a afouteza, a altivez e a naturalidade, um pouco de orgulho e de simplicidade, um não sei quê, emfim, em que entram todos esses predicados em proporções convenientes.

Mas todas as mulheres os surprehendem, e todos os homens.

Por certo que a baroneza de Node não denunciava, ao analysar a sua figura, nada de particularmente notavel, parecendo até, á primeira vista, que deveria passar desapercebida, por toda a parte; era uma mulher mais baixa do que alta, muito gentil, mas d'uma gentileza um tanto fransina, um pouco delicada, de olhos pretos, d'uma notavel ternura, cabellos castanhos, iguaes a todos os cabellos castanhos, e d'um talhe fino, esbelto, semilhante a todos os talhes finos.

As suas toilettes não eram nem muito severas, nem demasiado vistosas.

N'esse dia, usava um vestido de passeio, de veludo castanho com applicações côr de hervilha clara, um chapeu adequado, sem o menor caracter de excentricidade.

E, comtudo, os cavalheiros e as senhoras que se cruzavam com ella seguiam-na com um olhar mais persistente e curioso e os empregados da casa caminhavam ao seu encontro com uma sollicitude mais caracterisada.

Pormenores interessantes: as orelhas garridamente guarnecidas, os dentes muito brancos e muito iguaes, a finura das mãos e dos pés corrigiriam, sem duvida, o que o seu aspecto geral tivesse de indifferente, se não fosse o tal «não sei quê». Mas ella tinha-o, e não sei tambem porque, sabia que o tinha.

Um muito leve, um imperceptivel traço de impertinencia, pairava, mais accentuado quando se não desejava tornar notada, nas suas narinas finas e nos seus labios sensuaes.

Era o unico senão d'aquella physionomia. Quando nada despertava a sua attenção, como no caso presente, emanava de todo o seu ser um certo desprazimento que tanto poderia revelar a apathia d'uma mundana exhausta de frivolidades ou uma extrema preoccupação de si propria.

Este ar de enfado estava de tal modo impresso no seu rosto delicado que modificava logo a impressão que o seu porte aristocratico havia suscitado.

– «É uma mulher vulgar», diziam de si para si os visitantes que se sentiam attrahidos para outras clientes de aspecto mais jovial.

«Como é formosa!» pensavam os rapazes, que se encontram sempre em abundancia n'estes pontos de concorrencia feminina, promptos a seguir indistinctamente uma mulher bonita sem se lhe approximarem, para depois pensarem n'ella não menos indistinctamente.

E, portanto, se um d'elles seguisse attentamente a gentil baroneza, teria visto a sua physionomia d'uma friesa, que parecia dever conservar-se sempre impassivel, contrahir-se numa expressão de aguda curiosidade, n'um determinado momento da visita ao grande armazem; um brilho intenso illuminar o seu olhar quasi melancolico, e parar de repente.

Era forçoso que no meio d'essa multidão agitada, que se movia e expunha n'uma atmosphera cada vez mais suffocante, tivesse observado alguma coisa ou alguem que despertasse n'ella emoções bem vivas e profundas, porque uma tão instantanea metamorphose, que para o observador estranho seria imperceptivel, a um simples golpe de vista.

Um perfil observado e reconhecido, entre tantos outros, ao fundo d'uma escada que se preparava para descer, era a causa da sua emoção; por isso os seus pequeninos pés se movem com grande rapidez para a transpor o mais breve possivel, olhando sempre por sobre as cabeças dos transeuntes, para não deixar de ver aquella cuja presença a havia impressionado tão vivamente.

Não tinha o facto em si apparentemente nada de anormal; aquella pessoa era nada mais e nada menos do que uma das suas primas mais intimas, quasi uma irmã, a jovem marqueza de Chalinhy.

Mas a baroneza de Node tinha motivos muito especiaes (o decorrer da narração o demonstrará) para ligar uma extrema importancia aos mais insignificantes actos e gestos d'essa supposta amiga:

– «Valentina aqui?» dizia ella, deslisando rapidamente por entre a multidão cada vez mais compacta dos compradores. Era guiada pelas duas grandes plumas pretas que guarneciam o chapeu da senhora de Chalinhy «depois de se ter recusado a sahir comigo a pretexto de ter que fazer visitas? Era então uma desculpa por não querer andar comigo… Reconheço bem que está mudada. Tem suspeitas. Já o disse a Norberto depois da estada em Deauville… Esta recusa em sahirmos juntas e depois que lá esteve… Quando se quer saber a verdade sobre as coisas importantes é necessario lançar mão dos mais insignificantes pretextos… Pelas suas maneiras, quando nos encontrarmos, verei o que ha em tudo isto…».

Este monologo envolvia um d'esses terriveis segredos que a vida elegante muitas vezes occulta com as suas formulas banaes. Ao termina-lo, as suas faces, habitualmente descóradas, estavam rosadas; os seus movimentos tinham tomado uma tal celeridade, que, apesar dos obstaculos, já quasi se encontrava junto d'aquella que perseguia.

Alcançal-a-hia em alguns segundos apenas, quando, repentinamente, começou a demorar o passo, como se uma nova idéa a determinasse a augmentar a distancia que a separava da senhora de Chalinhy.

É que, envolvendo sua prima n'um olhar observador, estudando-a, sem que ella a visse, a baroneza de Node, acabava effectivamente de sentir uma nova sensação, a principio confusa e inconsciente, depois definida e precisa, a ponto de se tornar o inicio d'uma curiosidade tambem nova, mais extraordinaria e mais viva ainda: parecia-lhe que a outra atravessava a multidão como alguem que procure confundir-se n'ella, a fim de fazer perder a pista a quem pretenda seguil-a.

A marqueza levava um vestido escuro, que não attrahia as attenções.

O véo de málhas apertadas que escondia o seu rosto, parecia ter sido escolhido propositadamente para tal fim. Caminhava ligeira, como uma pessôa que tem pressa, e sem olhar para nenhum d'esses mil objectos differentes que se achavam expostos por toda a parte em torno de si.

– «Aonde irá ella?..»

Ainda esta pergunta não tinha penetrado no pensamento de Joanna, e já ella lhe respondia mentalmente da fórma porque o fariam noventa e nove por cento das parisienses.

– «Aonde póde ir uma mulher bonita, de trinta annos, e que se occulta?

«Será possivel que Valentina, a gráve e prudente Valentina, vá para uma entrevista amorósa ou regresse d'ella?»

Tudo no seu caracter protestava contra semilhante hypothese.

A baroneza de Node sabia-o melhor do que ninguem, tendo sido educada com ella, e encontrando-se, por circumstancias que lhe não eram muito lisongeiras, ao corrente dos segredos mais intimos da vida da sua prima. Mas quando uma mulher não é honesta – e Joanna não o era – não acredita nunca, sem reserva, na irreprehensivel virtude d'uma outra. Por isso é que o mais leve indicio a punha no rasto do que a humanidade em linguagem de giria, chama um «embrulho» e vel-a hemos, apezar de dizer respeito á sua melhor amiga, desenvolver um talento de investigação tão completo como o d'um velho magistrado.

Eram uns nadas que tinham facil explicação: a recusa em sahirem juntas, com o pretexto de ter que fazer visitas, e depois esta entrada no grande armazem de novidades!

Bastava que a marqueza de Chalinhy não tivesse encontrado as pessôas que ia visitar, e que depois, passando pela rua de Rivoli, deante da fachada principal do grande armazem se tivesse lembrado, á ultima hora, de fazer qualquer compra. Era ainda uma insignificancia o seu fato escuro, o seu veu expesso e a sua passagem quasi furtiva atravez da multidão. E portanto, esta tão vaga, tão gratuita hypothese d'um mysterio culpavel, contrabalançava já, no espirito de Joanna, a longa experiencia que tinha a respeito da natureza de sua prima, por isso que a seguia de longe e sem se approximar d'ella.

Via-a caminhando sempre com aquelle passo rapido de quem vae direito a um fim, sem uma distracção, sem uma paragem, seguindo de galeria em galeria, e alcançar por fim uma porta affastada que dá para o angulo da rua Saint Honoré em frente da rua Croise des Petits Champs.

No momento em que a senhora de Chalinhy empurrava a enorme meia porta envidraçada, foi detida por um grupo de pessoas que pretendiam entrar. Teve que esperar um minuto, e voltou-se. A espionadora, que se achava só a alguns metros de distancia, para não ser surprehendida em flagrante delicto da sua ignobil espionagem, não teve senão o tempo sufficiente para se voltar tambem e fingir que analysava uns objectos que se achavam ali proximo.

Valentina de Chalinhy tel-a-hia reconhecido, ou tendo-a visto não se julgaria reconhecida por sua prima?

Quando se voltou de novo, Joanna não viu mais as duas plumas pretas, que a orientavam n'esta caminhada atravez da multidão. A crescente suspeita continuava a aguilhoal-a tão fortemente, que correu para a porta afim de chegar o mais depressa possivel ao vestibulo, do qual se devisavam tres ruas ao mesmo tempo, e descobriu aquella que espionava.

A senhora de Chalinhy estava fallando com o cocheiro d'uma carruagem, que evidentemente ali a aguardava, e que retinha o seu cavallo impaciente no meio da rua Saint Honoré, ouvindo attentamente a direcção que lhe dava a sua cliente, com a mão collocada no portinhola aberta. Fez um gesto que designava haver comprehendido. As plumas negras perderam-se na carruagem, a pequenina mão fechou a porta e o cavallo partiu em direcção ao Louvre, tão rapidamente que a baroneza de Node não teve tempo de procurar outra carruagem que lhe permittisse seguir a pista em que o mais inexperado dos acasos a tinha lançado.

Chamou um cocheiro que passava, depois um segundo. Ao seu appello responderam o primeiro com um insolente silencio e o ultimo com um ligeiro movimento de hombros. Ambos tinham já freguezes.

– «Como sou tola!..» disse comsigo a baronezazinha.

«Não a tornarei a apanhar, com certeza…

«O que é preciso saber é se ella sahiu de casa na sua equipagem…» E, obedecendo machinalmente ao instincto de policia secreto, despertado n'ella por este encontro, seguia já pelo passeio em direcção á praça do Palais-Royal. Preparava-se para passar em revista as equipagens que ali esperavam collocadas na rectaguarda umas das outras. Não teve necessidade d'uma demorada observação para reconhecer, entre os criados de libré que estacionavam deante da grande porta, João, o lacaio da marqueza. Um pouco mais distante o cocheiro José, assentando na almofada, a parelha de cavallos baios atrelados a um coupé com as armas de Chalinhy.

Valentina tinha executado a classica manobra: havia descido da carruagem official d'aquelle lado, a fim de justificar a demora em outra parte, confirmando assim o dictado.

«Antes de chegar aonde não quer ser vista, a mulher que sae, vae sempre a um logar em que quer que a vejam». E aonde vae uma mulher que não quer ser vista?

II

Historia rapida d'um odio antigo

Para comprehender os sentimentos que uma tal descoberta produziu em Joanna de Node, é necessario precisar uma situação de facto já indicada, e um estado d'alma mais essencial ainda.

Certos actos são por si mesmo tão graves que parecem tocar os limites da nossa culpabilidade. Podem, comtudo, ser ainda aggravados com a maldade dos sentimentos que nos compelliram a pratical-os.

Advinha-se logo ás primeiras phrases d'esta narrativa: que, á data em que a historia começa, existia entre a baroneza de Node e Norberto de Chalinhy, marido de Valentina, uma ligação muito intima. Esta intimidade durava já havia mais de um anno.

Se attendermos a que não eram só os laços de parentesco que uniam as duas primas co-irmãs mas que, além d'isso, tinham sempre sido inseparaveis haviam crescido e brincado juntas, entrado na sociedade juntas, e que uma tal intimidade fôra sempre acompanhada, e continuava ainda a sel-o, d'aquella afabilidade de palavras e maneiras que constituem a graça acariciadora das amisades femininas – ver-se-ha como uma tal perfidia ultrapassa muito os limites d'esses coquetes delictos mundanos que quotidianamente se commettem, com o nome, n'outro tempo tão grave, e hoje tão insignificante, de adulterio.

O verdadeiro crime d'esta aventura, não estava propriamente na falta em si, n'uma traição que a fraqueza d'um coração perturbado, um casamento infeliz – Joanna estava separada de seu marido havia tres annos, – um amor partilhado, podiam explicar. O verdadeiro motivo do delicto era, porém, peor que o proprio delicto. Consistia principalmente na mais mesquinha, na mais incomprehensivel, na mais violenta das paixões de que as naturezas seccas e desprendidas, como a sua, sejam capazes: A baroneza de Node não amava Chalinhy, odiava Valentina, e desde a sua longinqua infancia, por motivos tão impenetraveis, tão intimamente nascidos no recondito da sua alma que ella propria o ignorava a principio. E ainda hoje mesmo não estava muito consciente d'isso.

Não se reconhece facilmente que se inveja alguem – é aquelle o termo que melhor exprime este enigma moral – porque equivale a reconhecer tacitamente uma certa inferioridade em relação á pessoa que se inveja, e a existencia em nós proprios d'um sentimento aviltante.

Mas, por mais que dissimulemos os nossos baixos instinctos, a sua vilania não é menos intensa sob as apparencias hypocritas de que os revistamos aos nossos proprios olhos; e era bem a intoleravel revolta de todo o seu ser deante da felicidade de outro ser, que Joanna tinha começado a sentir por Valentina, ha muito, quando eram apenas duas creanças que corriam pelas alleas do parque, de tranças cahidas, e que continuava a sentir havia trinta annos. No destino de sua prima, só Joanna via bom exito, e no seu, o infortunio. Pensando e sentindo assim, laborava n'um grande erro. É que a inveja engana-se sempre que aprecia a alegria dos outros, e é essa a sua primeira punição. Exaggera-a e soffre muito com isso.

Engana-se tambem muitas vezes quando, em seguida, trata de preparar a infelicidade que deve constituir a sua vingança. Nove vezes em dez, os seus esforços, falseados pelo odio, produzem precisamente o effeito contrario.

Como muitos dos nossos maus sentimentos, que nos permittem proceder mal achando sempre desculpa para isso, a inveja de Joanna por sua prima tinha-se insinuado no seu coração sob a apparencia de delicadas susceptibilidades. Os paes das duas primas eram irmãos; chamavam-se, conforme o costume francez que destruiu a nobreza multiplicando os titulos nobiliarchicos – quando pelo contrario toda a casa nobre deveria ser vinculada n'um só dos seus membros, seu representante – um o conde e o outro o visconde de Nerestaing. Valentina era filha do mais velho. Este é que tinha herdado o magnifico solar de familia que lhe dava o nome e que partilha, com os de Rambures e de La Tour Euguerrand, a honra de ser na Picardia a mais bem conservada das fortalezas construidas contra a invasão ingleza.

Nerestaing data de 1338, da epocha do armsticio que o Papa Bento XII impoz ao rei Eduardo III.

Pelo facto de nas partilhas ter pertencido esta maravilha de architectura ao representante da familia, tinha o mais novo sido desterrado para uma quinta proxima, denominada «Os Salgueiros» e que pertencia por acaso aos Nerestaing, devido á liberalidade de um parente. Joanna tinha lá nascido, e as suas mais longinquas recordações d'infancia mostravam-lhe o modesto palacete – um antigo pavilhão de caça – onde cresceu, e, por contraste, a senhorial vivenda em que habitava sua prima.

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